quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Só no Crato Mesmo...


A VELA E A CERA


Do velho Chico de Né , no alto dos seus setenta anos, já não se esperava saúde perfeita. Mesmo assim , alquebrado pelo tempo,o homem ainda cambitava cana e passava quinau em muitos trabalhadores mais novos. Franzino, feito mané magro de aroeira, curvava-se com o vento, igualzinho aos pendões do canavial. Pois , o velho,sem mais nem menos, andou tomando uns ventos encanados de junho e caiu doente. Apresentou uma tosse braba , parecia cachorro entalado. Fez os tratamentos caseiros com lambedor e chá de jalapa, mas piorando rapidamente, terminou sendo interno no pequeno hospital da vila.Lá, no entanto, as coisas não andaram melhores, agravou-se a doença e, uns três dias depois, Chico já estava com a burra amarrada na calçada pronta para viagem derradeira. Os filhos, pressentindo a morte próxima, se avexaram , pragmaticamente, em resolver as questões mais urgentes . Pobre é assim, são tantos os problemas que se vão resolvendo os mais intransferíveis : almoçar, jantar, sepultar. Lembraram que aquele era ano de eleições, dias de sorrisos rasgados, braços abertos e caridade explícita. Rapidinho , conseguiram uma mortalha com um candidato a vereador e com o prefeito descolaram o caixão de defunto.Levaram os dois utensílios para casa e ficaram esperando o previsível fim do enredo. Na sala única da casa, postou-se aquele féretro , de pé, como se fora um guarda roupa e, sobre o oratório, a mortalha negra aguardando os dois, pacientemente, o recheio.
Sertanejo tem fôlego de sete gatos. Pois, o que menos se esperava acabou por acontecer. Chico prestes a comer capim pela raiz, empertigou-se, engrossou o pescoço e , uma semana depois estava de volta a casa , para surpresa geral dos vizinhos e familiares.Durou pouco a convalescença, rápido teve que retornar ao eito pois agora corria outro risco: o de escapar da doença e morrer de fome. Na sala, o ataúde e a mortalha pareciam sem serventia. Em casa de pobre, no entanto, não há lugar para supérfluos, Chico , prontamente, fincou alguns pregos dentro do caixão e passou a usá-lo como guarda-roupa na parte superior e , embaixo, como despensa, acomodando milho, arroz, feijão. A mortalha acondicionou no recém arranjado guarda-roupa e , como aquela agora era sua vestimenta mais chique, vestia-a nas renovações e quermesses.
Quem o visse naquela esdrúxula vestimenta, em dias de festa ,ou utilizando o insólito e novo guarda-roupa , imaginar-se-ia imerso num filme de Fellini.Por que uma convivência tão amistosa e pacífica com os sagrados objetos dos rituais de passagem ? Talvez porque , para o pobre, a morte faz-se apenas uma quase imperceptível extensão da existência. A vida transfigura-se na morte de cada dia. Onde o ser ou não ser, a mortalha e o paletó , o guarda-roupa e o esquife são , meramente, formas diferentes de um mesmíssimo objeto. Como a vela que queima e a cera que se derrete ao seu derredor.


J. Flávio Vieira

Gravura : Dali

Um comentário:

  1. Cada dia melhor!
    Lembrei-me daquela piada que o pobre queria enterrar a mãe que morrera na sexta-feira e foi até o Prefeito pedir uma ajuda. O Prefeito(enrolando) pediu que retornasse na segunda-feira. O pobre, humilhado, arrematou:
    -Seu Prefeito dá pro sinhô adiantar uns trocados?
    O prefeito, desconfiado:
    -Pra que cê quer uns trocados, hômi?
    O pobre, de pronto:
    -É pra eu compra um quilo de sal pra salgar a "veinha" pra ela esperar até segunda-feira!

    (Boa, não é?)

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