domingo, 2 de setembro de 2007
Letra de música é poesia?
Li por aí alguém afirmando que Chico Buarque não é poeta, é letrista. Em sentido contrário, Paulo Henriques Britto (em Azougue 10 anos, 2004, p. 263, em entrevista a Sergio Cohn), afirma: “As letras de Caetano Veloso, Chico Buarque, Torquato Neto e tantos outros empolgavam-me por ser poesia e falar das coisas e do tempo em que vivia, no tom exato, com as palavras do meu dia-a-dia, tal como os modernistas haviam falado do mundo deles com um vocabulário e uma sintaxe que antes não eram considerados apropriados à poesia. Estes artistas populares significam a minha fala e as minhas vivências .” É bom frisar que Paulo Henriques, além de poeta, é lingüista por formação acadêmica.
Os letristas seriam poetas “menores”, as letras constituiriam uma sub-literatura, mal comparando a arte com o artesanato?
Sei não. Ouvindo rádio e assistindo televisão, escutando tantas banalidades... Raps e pagodões maçantes, sertanejos acaramelados, axé baiano e reggae maranhense insossos, rock caseiro e hip-hops repetitivos, dá para entender o preconceito em relação às letras de músicas como poesias. Mas, por exceção, deve haver axé, reggae, pagode e sertanejo de qualidade.
Noel Rosa foi ou não foi o poeta da Vila? E que dizer do Cartola? Podemos considerar poeta um Catulo da Paixão Cearense (que era maranhense)? Eram sim, foram, são poetas e pronto. Caetano é um poeta!
Caberia, no entanto, em contrapartida, também afirmar que nem todas as letras de Caetano e de Chico podem ser consideradas poesia, mas apenas “letras” de música?
Alguém saiu com essa e eu não tinha uma resposta pronta, e deixo aos leitores o direito de resposta, como ao amigo o direito da dúvida. Na mesma linha de raciocínio, também seria possível afirmar que nem todos os poemas de Drummond ou de Bandeira são, em verdade, poesia. Seria admissível afirmar que alguns poemas de Fernando Pessoa seriam “menores”? Também vou escapar pela tangente...
Só queria discutir um ponto: a relação entre poesia e música no ato criativo. Há músico que faz a melodia e depois o poeta “coloca” a letra. Vinicius de Moraes teria feito isso com Tom Jobim, com Baden Powell e até com compositores clássicos. Pode ou não pode?
Em sentido contrário, o músico “musicaliza” o poema como fez Joan Manuel Serrat com os versos esplêndidos de Antonio Machado e o nosso Fagner fez com um texto de Cecília Meireles.
Tem muito a ver com o tipo de composição. Alguns músicos pautam melodias em quadraturas fixas, bitoladas, como o bolero ou o samba, levando-os á intervenção nas letras para ajustá-las, seja podando-as ou ampliando os versos. Também alguns poetas se enquadram nos compassos e ritmos assinalados. Mas alguns compositores, como Arrigo Barnabé e Tom Zé, criam livremente, sem conformar-se a ritmos da moda.
Aonde quero chegar? A lugar algum, a nenhum lugar...
Estamos falando de desafios. Vence quem tem talento, banaliza quem imita e não tem o que dizer. O que devemos julgar – se cabe algum juízo sobre a questão – é a coisa em si, o poema mesmo. Letra de música pode ser e não ser poesia.
“Luar do Sertão” é poesia com ou sem música. Tive a certeza disso, de forma empírica, quando uma amiga estrangeira, especialista em literatura, ficou impressionada com o poema, apesar de singelo. Hoje estudamos os textos de Catulo da Paixão Cearense e de Noel Rosa na academia como autênticos poemas, sem preconceitos, em dissertações e teses doutorais. Melhor ainda quando o estudioso busca a relação entre a música e o poema pois, sem dúvida, deve haver uma complementaridade (ou ampliação de sentido) entre ambos no ato da criação. A poesia, desde suas origens, sempre esteve ligada ao teatro, à música e a outras manifestações culturais.
O que dizer da inteligibilidade e da legibilidade da música e da poesia? O “intérprete” da música (pensemos em Maria Bethânia) costuma esforçar-se para que o ouvinte entenda o sentido (ou o “sentimento”) da letra da música. Pode até cantar à capela, só com a música das palavras no embalo da melodia, sem qualquer acompanhamento instrumental. O cantautor costuma valorizar sobremaneira a mensagem de suas composições tanto quanto o declamador ou o performer em um sarau ou poemashow. No entanto, muitos cantores (medíocres) não atinam para o significado das palavras que cantam e parece que o público ouve e não entende nada... e até gosta! Música sem mensagem explícita, sem significado apreensível, apesar da letra.
Em certa ocasião participei de uma gravação e o cantor não valorizava o texto da canção. Discuti com ele o sentido das palavras e ele incorporou na intenção do canto e a regravação ficou bem melhor. Mas já há poetas que também não perseguem a legibilidade dos textos e menos ainda para a sua inteligibilidade.Os textos são intencionalmente herméticos, intranscendentes, incomunicáveis. Nada em contra, tudo bem, ok, se a intenção é essa... Pior é quando o autor deseja comunicar algo e o que se ouve é sem sentido... Tem de tudo, vamos ficar por aqui.
Por último, antes que eu me esqueça, o que é mesmo poesia? Existem muitos tratados sobre o tema, é assunto para outra ocasião.
Por Antonio Miranda
Antonio Miranda é poeta, romancista, crítico, ensaista. Doutor em ciência da informação e professor titular da Universidade de Brasília, e atual diretor da Biblioteca Nacional de Brasília. É autor de mais de quarenta livros, alguns publicados também em espanbol. Seus livros mais conhecidos são Tu País está Feliz (a 12a. edição em Caracas, 2007), Despertar das Águas (2006) e Eu Konstantinos Kaváfis de Alexandria (Brasília: Thesaurus, 2007).
Site: www.antoniomiranda.com.br E-mail: antmiranda@hotmail.com
O próprio Chico fala sobre letra e música caminhando lado a lado (em 1971):
ResponderExcluirBondinho - Você mexe muito bem com as palavras, né? Você sente muita diferença em mexer com a palavra ou mexer com a melodia? Pessoalmente, você gosta mais de uma coisa ou de outra?
Chico - O que acontece é o seguinte: tenho mais habilidade de mexer com a palavra que com a música. Tenho bastante facilidade pra música. Quer dizer, eu não sei escrever poema, não escrevo, nem nunca me passou pela cabeça. A não ser quando era garoto. Um livro de poesia, por exemplo, eu não escrevo.
Bondinho - A reação é simultânea?
Chico - É simultânea. Mas eu sinto que na hora de puxar, talvez as palavras valham mais, elas pedem mais que a música na hora de puxar prum determinado caminho. Às vezes é o contrário. Às vezes tem uma idéia de música que me conduz prum outro negócio, então as palavras têm que obedecer o negócio, vão ter que seguir o caminho que a música for traçando. Mas não há uma dependência assim.
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Agora, conceituar poesia.. aí já é todo um processo...