quarta-feira, 5 de setembro de 2007
Rayuela
A maior contribuição de Julio Denis
Por Cassiano Viana
“Los princípios eran entonces letra viva y no como hoy, reliquias a exhumar. No es que no existan hoy las causas. Pero siento que las causas capaces de convocar a la juventud tienen un carácter más virtual, y son representaciones un tanto abstractas, como la globalización, por ejemplo”.
Sergio Ramirez
A grande obra de Julio Cortázar não foi Rayuela, “O jogo da amarelinha”, de 1963, e o labirinto brincalhão de sua estrutura narrativa; aquele Quadro de Orientação para Leitura, logo nas primeiras páginas do livro, suas Morellianas ou o estabelecimento de duplos em seus personagens/amantes: La Maga, Horácio Oliveira, Talita e Traveler (para ficar em apenas um dos vários enigmas): “I am he as you are he as you are me and we are all together”; ou aquilo que o professor Davi Arrigucci Jr, no fundamental “O escorpião encalacrado”, de 1990 – que segue o melhor estudo sobre o escritor argentino até agora, chamou de um romance “marcado pela busca intelectual do próprio romance”, brincadeira continuada em “62 Modelo para armar”, de 1968: personagens como peças de um xadrez ou quebra-cabeças ou bonecas matrioskas.
Para alguns estudiosos, apesar do livro não conter propostas políticas ou querer abolir injustiças, Amarelinha é uma novela de iniciação para jovens revolucionários. Contam que, em alguns países, na Nicarágua, por exemplo, estudantes largavam as universidades para se alistarem na guerrilha, na luta sandinista, após ler Amarelinha, o “salto no vazio” que permite reconstruir a identidade por meio do questionamento dos “sucessos do mundo” oferecidos descaradamente já naquela época e da angustia pela liberdade, a identificação do “ser” e principalmente do “não ser” e novas formas de condutas pessoais. “Diríamos que nasci para não aceitar as coisas como elas me são apresentadas”, dizia Julio.
Cortázar, que manteve, mesmo que aos trancos e barrancos – sabe-se como funcionam as ditaduras e a liberdade de expressão - uma relação fiel com a revolução cubana e buscou contribuir com a luta pelos direitos humanos e pela América Latina, levou seus compromissos e a guerra física para os domínios pessoais, e círculos literários e intelectuais. Ainda que a consciência política do argentino não esteja explicita em toda sua obra, sua tendência para a busca da libertação do espírito dos povos e do homem se projeta em várias de suas obras, no conto O perseguidor (em “As armas secretas”, de 1959), em “Fantomas contra los Vampiros Multinacionales”, de 1975, em “O livro de Manuel”, de 1978, por exemplo, mas, sobretudo em “História de Cronópios e Famas”, de 1962. Esta, para mim, sua grande referência e contribuição literária. (Sejamos sinceros: quantos haverão lido integralmente, tanto quanto ao Ulisses joyceano, ou ao Grande sertão, de Rosa, Amarelinha? Sei, no entanto, que questionar isso é gerar polêmica fácil e rasteira, tão ditatorial ou fama e que não importa quanto, logo, vamos ao que interessa).
O livro com o universo abarrotado de cronópios (estes “objetos verdes y húmedos, son unos seres desordenados y tímidos” – os artistas?), famas (com quem os cronópios mantêm uma relação dialética – os “burgueses”? ainda é possível usar isso?) e as sedentárias esperanças (criaturas intermediárias entre estas duas iniciais) tem o mesmo efeito que qualquer disco dos Beatles para alguém que esteja do lado oposto ao dos Malvados Azuis.
Cortázar, de certa forma, representa na literatura o que na música simbolizam, por exemplo, os Beatles: o sonho, a alegria, a esperança, a juventude, o viço. A idéia de que é possível não ser um escaravelho peludo e deixar que as coisas aconteçam na página como à sua maneira está acontecendo na rua ou na praça aqui ao lado, como pede a panamenha do conto Bix Beiderbecke.
Ad hoc, ad loc and quid pro quo...So little time,so much to know!, suspira Jeremy, o Nowhere man.
Para mim, os cronópios permanecem – mais que O jogo da amarelinha – a maior contribuição de Julio, não só para a literatura, pese o fato que o mundo parece estar mesmo implacavelmente dividido entre eles, os cronópios, as esperanças e os famas.
A força dos cronópios é a poesia, a rebeldia, o questionamento contra a padronização, o Grande Costume. Todos queremos tanto ser cronópios e repudiar aos famas. Com os cronópios, Cortázar nos proporcionou uma vida menos pesada, melhor, quase suportável. Ele, que dizia se sentir uma criança aprisionada em um corpo de adulto e gostava de usar a palavra brincar para classificar seu trabalho. Mesmo aquilo que poderia parecer um manual, suas instruções, para subir uma escada, para chorar, para matar formigas em Roma, para dar corda no relógio ou para entender três quadros famosos, são manifestos de anarquismo, influenciado pelo surrealismo que era Cortázar.
Love, Love, Love. Amor, revolução e literatura: estas, as bases da aventura cortaziana, caro leitor. Com os cronópios, Cortázar queria dizer (neste momento, posso muito bem estar incorrendo no mesmo erro daqueles que se vangloriaram de descobrir nas iniciais de “Lucy in the Sky with Diamonds”, o convite para uma viagem lisérgica): é possível ser assim, qualquer um, desconexo, um tanto quanto autista, distraído e trapalhão; a beleza reside também nessas características, e não só no carro do ano, no emprego estável, no curso de direito cursado apenas porque este pode representar o caminho natural para a tão sonhada vida nos tribunais.
Os juízes de hoje sãos médicos, publicitários e bancários de ontem e o geneticista de amanhã: o exercício da prática e da aceitação da diferença. Universo lúdico ao qual Cortázar retornou ao menos duas outras vezes: em “Um tal Lucas” (de 1979, onde escreve sobre a Argentina, sobre os laços de família, sobre os destinos das explicações e dá conselhos sobre como lustrar sapatos) e em “Silvalandia” (de 1975, escrito a partir de pinturas do artista plástico Julio Silva, capista, diagramador oficial de seus livros e amigo íntimo).
“Los princípios eran entonces letra viva y no como hoy, reliquias a exhumar. No es que no existan hoy las causas. Pero siento que las causas capaces de convocar a la juventud tienen un carácter más virtual, y son representaciones un tanto abstractas, como la globalización, por ejemplo”.
Pátria, familia, ordem, sucesso profissional, os bons modos, nem tudo quer dizer calças bocas-de-sino, cabelos compridos, boinas de feltro, ou piercings, tatuagens, roupas rasgadas, coturnos. É possível estar alinhado com a própria rebeldia, usar terno e gravata. Acho que foi a Rita [Lee] que disse: em tempos como os nossos, a maior rebeldia é tentar ser honesto, ético, fiel, monogâmico, parar de beber e usar drogas. Ser careta. Uma brasa, mora?
Arf, Arf, he goes, a merry sight
Our little hairy friend
Arf, Arf, upon the lampost bright
Arfing round the bend.
Nice dog! Goo boy,
Waggie tail and beg,
Clever Nigel, jump for joy
Because we are putting you to sleep at three of the clock, Nigel.
[John Lennon, Good Dog Nigel]
Cortázar foi um homem comum, como naquela música do Caetano. Arcaico e moderno, sério e brincalhão. Duplo, no mínimo, capaz de ser perder em um aquário e trocar de lugar com axolotes, e ao mesmo tempo escrever minuciosos ensaios sobre John Keats e participar de um momento importante de nossa história contemporânea como foi o Tribunal Russel, criado por Bertrand Russel e Jean-Paul Sartre na década de 60 para julgar os crimes de guerra e denunciar as violações dos direitos humanos.
Tão virginiano quanto Paulo Leminiski (ambos do primeiro decanato, os separam apenas dois dias: Paulo nasceu no dia 24 e Cortázar no dia 26 de agosto) ou meus amigos Löis Lancaster e Susan Blum, assim como os Beatles e Che Guevara, Cortázar é um jovem que nunca envelhece e que, como diz a lenda, nunca deixou de crescer.
“Um dia de minha vida é sempre algo muito bonito, pois sou feliz de estar vivo. Não tenho nenhuma intenção em morrer, tenho a impressão de que sou imortal. Sei que não o sou, mas a idéia da morte não me molesta e tampouco tenho medo. Nego-lhe a existência, logo, isso me ajuda a viver de uma maneira, como posso dizer, sob o sol, solar. Sou contente por estar vivo e, além do mais, há algo que poucos levam em consideração. Creio que é um prodígio maravilhoso que todos nós sejamos seres humanos, que estejamos no mais alto da escala zoológica, por um acaso puramente genético. Por que tu não és responsável por ser quem és. Todos nós viemos de uma longa cadeia genética, e quando vejo uma galinha ou uma mosca que também nasceu nessa mesma cadeia genética, me maravilho por ser um homem e não uma galinha. Eu sou um homem, com tudo de bom e de ruim que isso tem. E estou contente por ter uma consciência”.
A simplicidade e humanidade sem frescuras de um grande escritor. Esta, sua maior contribuição.
Cassiano Viana é jornalista, escritor, tradutor e está finalizando, com a curitibana Susan Blum, a primeira biografia em português do escritor argentino Julio Cortázar. Já em fase de revisão, nas últimas semanas, tem conversado, por e-mail e telefone, com amigos e pessoas próximas ao escritor argentino, dentre eles, o artista plástico Julio Silva e o pintor Luis Tomasello.
E-mail: cassiano.viana@gmail.com
Do Site : Cronópios
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