terça-feira, 4 de setembro de 2007

Engolindo em seco




Quando as águas se agitam, as ondas parecem nos tragar, a borda segura de um porto se emoldura em nossos desejos. Um porto seguro, dadivoso, presente, sólido no qual se possa agarrar. Mas existem tantos portos na bordas dos rios e mares que as classificações parecem não se esgotar. Existem portos frágeis como tábuas se despregando. Outros portos existem que flutuam com o movimento das águas, seja a maré enchente ou em vias de secar. Portos em planícies, portos sob montanhas, portos aos quais se reúne e portos pelos quais se deseja fugir. São os portos afinal que parecem responder ao desejo de segurança sempre presente nesta vida em curso de transformação.

Assim ela se encontrava em frente às vagas da sua "insustentável leveza do ser". Um pouco de finanças ameaçadas, um tanto de orgulho ferido, algo de abaixamento de poderes, muito de dissimulação entre aqueles que decidem. O que se exaltava no debate das manhãs e tardes, se esgotava nas angústias das noites mal dormidas. Indormidas, malditas horas entre diálogos com espectros adversários: e se me disseres isso eu responderei assim e assado e se ainda mais forte vieres em teus argumentos de fuga, mais longas serão minhas sílabas e mais ríspidos os adjetivos que te classificarão.

E ele, que seria um provável porto seguro, cogitava consigo mesmo a fraqueza de seu entabuamento. Não poderia lhe oferecer a segurança que perdera. Mas aquilo era um sofrimento de fujão. Quando era para ele ser o que ela precisaria, ele não era não e nem sim. Era um assim ou assim. Algo indefinido, mas profundamente doloroso. Teria que se apresentar, pois era o que ela esperaria, mas como se apresentar com aquele porte de espantalho. De roupas rotas, cujo estofamento eram palhas, um chapéu esburacado, uma face de pano.

Mas a obrigação tem cada razão que mesmo a covardia não suplanta. Afinal, lá ele esteve. Encontro-a nervosa, falando pelos cotovelos, adjetivando metade da população com maldição e a outra metade promitente de igual fúria. Ele não sabia qual cara mantinha, qual expressão de rosto se adequava, onde por as mãos. Um formigamento no juízo, entre o som do palavrório em expansão e o espaço incerto em que se encontrava. Não havia como representar o seu papel, ela falava, arrumava uma vasilha, puxava uma toalha de mesa, passava a vassoura numa sujeira imprecisa, esvaziou a cesta de frutas, retirando dela as últimas três bananas maçãs cujas cascas enegreciam como a maturidade apodrecendo-se.

Ela agitava o dedo indicador. Esbravejava com aqueles que a abandonaram à própria sorte, punha as mãos na cintura em desafio para uma pessoa imaginária que parecia provocá-la. Ele não sabia, literalmente, o que fazer. E quando ela vinha com um argumento mais forte, olhando fixamente para sua alma, ele apenas emitia um ruído de boca cheia: hum, hum, hum, hum. Por um segundo aquilo seria algo, mas ela não supôs, continuava em sua pregação aos faltosos. Pegava uma pá para tirar o pó que afinal sempre está em algum lugar e quando vinha com novo argumento, lá ele se encontrava com a boca cheia, bem fechada e o sempre: hum, hum, hum, hum.

Foi até a lixeira e lá despejou alguns grãos de pó como se um caminhão inteiro estivesse descarregando num lixão. Voltou à sala para fazer algo que sempre as mulheres encontram quando passam através do mobiliário de suas moradias e lá estava o amigo, de boca cheia, olhar fixo e: hum, hum, hum, hum.

Afinal, nada mais tendo para dizer a não ser as palavras de despedida, ele se foi com a missão cumprida. Mesmo torto, lá junto dela, naquele momento de fragilidade, estivera. Ela retornou à sala e finalmente lembrou-se dos diálogos em hum, hum do amigo. Um estalo se deu e olhou para o local onde as bananas estariam e lá não estavam. Lembrou que aquilo era mastigação escondida, o hum, hum, era disfarce de uma boca cheia de bananas. Foi buscar as cascas na lixeira e nada. Foi ao terreno em volta e também não. Em volta da casa nem pensar. E agora?


Ou comera as três bananas com casca e tudo ou o bolso escondera a prova do crime.

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