terça-feira, 4 de setembro de 2007

Só no Crato Mesmo...


O PATÉTICO E O PERIPATÉTICO


Rui Pincel chegou esbaforido na Siqueira Campos e acercou-se do banco de praça ,onde já se digladiavam inúmeras opiniões sobre assuntos que se estendiam do plantio do catolé até a chegada do astronauta brasileiro na estação espacial.Todo mundo entendia de tudo naquele universo esdrúxulo e peripatético. O consenso , a unanimidade faziam-se artigos raros e inalcançáveis por aquelas bandas. Os ânimos muitas vezes acirravam-se , máxime quando se tocavam em pontos sensíveis como política, futebol e religião.O furdunço , a encrenca – havia um tácito acordo sobre isto—não extrapolavam, no entanto, o sagrado espaço da praça. Inimizade duradoura, ressentimentos perpétuos sempre se tinham como coisa de iniciantes, de aprendizes, até porque acabavam por prejudicar o fluxo de discussão normal do dia a dia . Rodinha de potoca, conversa de banco sabia-se totalmente incompatível com caras trombudas, com espíritos armados e esgrima de indiretas. Pincel, já meio truviscado, aproximou-se com calma daquele tribunal ao ar livre e pôs-se a observar atentamente as opiniões diversas e díspares .

Não meteu a sua colher de pau no sarapatel servido em nenhum momento e, para os amigos mais antigos e próximos , aquilo era sinal inequívoco de que trazia consigo uma tese filosófica das mais elaboradas para defender na praça. Aguardou, com paciência, o arrefecimento das questões mais polêmicas e , só então, passou a explanar suas elucubrações com o ar sério e contrito de quem apresenta trabalho em banca de doutorado.
Lembram vocês da renhida luta das feministas pela igualdade dos gêneros? Pois bem, amigos, como vocês bem sabem toda solução de um problema cria invariavelmente pelo menos mais três. Houve um tempo em que homem ser sustentado por mulher era coisa inaceitável. Terminava por perder a identidade e não ser mais conhecido pelo nome, mas por : “Joca da Professora”, “Julim da Juíza”, “Tetéu da Doutora”.Pois o avanço feminino resolveu esta pendência para o nosso lado, afirma Pincel, como os direitos são iguais, já não existe nenhum problema em marido viver às custas da mulher. Depois do Gianechinni ,então, a coisa pegou, criou jurisprudência, qualquer “drome sujo” hoje canta de galo :

-- Quem quer ter galã em casa tem que pagar por isso ! Os mais tímidos , então, forjaram inclusive um álibi para levar todos os dias no bem-bom, na sombra e água fresca : --Por enquanto não estou trabalhando não, não existe emprego com salário justo para mim, resolvi estudar para concurso! Pronto! Aí não há necessidade de qualquer explicação mais detalhada, o malaca entrou numa categoria de elite e cada vez com maior contingente, o famoso “estudante pra concurso”. Criou-se o álibi perfeito, pois concurso tem todo tempo, com concorrência sempre expressiva , não se tornando nenhum desdouro levar pau. É só iniciar , imediatamente, os estudos para uma outra prova.Enquanto isto, a patroa vai pagando as continhas de final de mês.
A platéia abancada ouvia a tese de Pincel sem piscar, sem nenhum aparte, sem nenhuma questão de ordem. A partir daquele momento nosso narrador passou à parábola: -- Vocês lembram de Zacarias de Sofia ? Casou com a professora que hoje figura no seu sobrenome e até hoje nunca deu um prego numa barra de sabão.Acorda no meio dia,toma uma cachaça danada e quenga até o dia 25 de cada mês.

A partir daí, vira um santo até o dia 5, quando compra uma cervejinha, bota um disco de Roberto Carlos, veste a melhor roupa e espera a amaríssima Sofia que vem do BEC com o dinheiro do salário. Dançam rostinho colado os “Detalhes tão pequenos de nós dois” e até acabar o dinheiro fazem o mais feliz casal da cidade. Pois bem, não é que a turma deu pra encher o saco de Zacarias dizendo que ele era um parasito, não fazia porra nenhuma e morreria de fome se não fosse a mulher! Aí ele pegou ar na bomba, como Mercedes velho, cansado de ouvir os colegas dizerem que sua profissão era de “marido”, Zacarias usou o álibi universal do preguiçoso. Passou a informar para todo mundo que estava estudando para concurso. Já ia levando uns cinco anos nesta atividade estafante, quando finalmente resolveu se inscrever para o concurso de bombeiro. Todos os colegas se admiraram com a brusca coragem de Zacarias. O trabalho todos imaginavam ser de uma dureza tremenda: toque de recolher e despertar, treinamento militar para socorrer acidentados, apagar fogo na floresta e salvar velhinhas no meio das labaredas.

Dias depois os amigos foram surpreendidos com uma notícia terrível: Zacarias tentara suicídio e estava interno em estado crítico. D. Sofia não soube explicar o gesto tresloucado do marido. Após a alta da UTI, os colegas se acercaram de Zacarias ,com a consciência pesada de tê-lo pressionado a estudar e praticamente exigirem dele passar no teste. Isto, certamente, poderia ter levado o estudante ao desespero, na busca desesperada por uma profissão.Penalizados , junto do leito, desculparam-se:
--- Olha, Zacarias, nos perdoe, concurso é difícil mesmo, a concorrência é enorme e não é nenhum desdouro a pessoa não passar. Você vai ter oportunidade de fazer muitos outros e logo, logo vai ser contemplado... Tire estas besteiras da cabeça,descanse, tudo vai dar certinho...
Segundo Pincel, Zacarias soprou por entre as gazes que cobriam seu rosto quase que por inteiro:
---- O problema não é esse não rapaz , vejam que azar do fio de uma égua, pois não é que eu passei no diabo do concurso de bombeiro...



J. Flávio Vieira

6 comentários:

  1. Zé, excelente história. Mesmo se adivinhando o resultado, não se consegue parar antes do homem empregado. Agora um outro detalhe. A centralidade do mundo da velha Siqueira Campos se foi. Pelo menos aqui desta megalópole o perdi. Aqui tudo é excêntrico, tudo pode ter outra versão, mesmo sendo poderá existir um novo enfeito após este momento e lugar. A centralidade da Siqueira era a da opinião pública e hoje nem os mais sofisticados métodos estatístico do IBOPE consegue encontrar: tem mediana, quartis e desvios padrões.

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  2. Saudades da Miguel Lima verde...
    Na Siqueira Campos do meu tempo, vivia estacionado o automóvel de Pedro Maia.Ele era primo do meu pai, e a mãe para prestigiá-lo, só alugava aquele taxi! Bicho, eu morria de vergonha...Em plena adolescência, andar nas ruas do Crato, num carro caindo aos pedaços.Mas nem caía, nem o pneu furava....era apenas um carro antigo, que eu não sabia valorizar.Baixava a cabeça, acredita? Como eu era besta...Se fosse hoje não me aguentaria!
    Mas....A gente viveu décadas importantes! Somos da metade do século passado.A história de certa forma está um pouco em nossas mãos.E a fotografia é a prova incontestável das nossas lembranças!
    Gastei tanto salto do sapato, desfilando na Siqueira Campos para arranjar namorado!
    Meu pai era mais aparentado com a curriola da Siqueira Campos, do que com o povo de casa....Não sei o que conversavam tanto as "coroas" , meu pai, e uns poucos amigos...Mas sei que devia ser bem divertido, porque esse programa era diário, imperdível!
    Perdemos a magia do Cassino; o cheirinho do café Itaytera; as músicas de Billy Vaughn, nas Lojas Stuart e Frigidaire.Quem não namorou naquelas marquises, enquanto seu lobo não vinha?
    Zé, devolve meu Crato antigo, enrolado num papel? Sinto saudades até das mijadas de potó, no pescoço de donzela!

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  3. Muito bem!

    Mas aquela outra da garota que o pai mandou estudar na cidade grande e aprontou, é um dos seus clássicos ( IMHO ), que quer dizer: Im my Humble Opinion - Na minha humilde opinião...

    Zé, estou pensando aqui como vai ser esse seu livro de contos ( ou crônicas ), deverá ser algo mais ou menos do tamanho de EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO de Marcel Proust, porém, delicioso de ler, como as fábulas de Esopo.

    Abraços.

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  4. Já eu sou de uma outa geração posterior. Minha saudade é daqueles ótimos Pudins da lanchonete do BANTIM, lá no Calçadão, quando ainda era lá...bons tempos!

    Abraços.

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  5. Zé,

    Tuas histórias são boas demais!!!
    Eu tive um professor de português, que gostava de contar "causos" como você, e ainda nos falava de um irmão,que publicara um livro, no gênero.Um "caba" de Várzea Alegre...A gente da classe tratou logo de ler:"O jumento, nosso irmão".
    E não é que teu talento literário, e humor refinado, tem umas semelhanças com "aqueles dois" ?


    Abraços!

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