Emerson Monteiro
Por vezes quer-se pensar que existe relativa ordem neste mundo e a gente sorrir beatífico, parecendo que os equívocos dizem respeito aos outros lá longe. Passa-se a mão por cima dos espinhos, usam-se panos mornos e a vida continua. O tempo sem sol da poesia dorme esquecido na memória dos dias, fera embriagada na boca da caverna do futuro inevitável.
Na semana que passou, porém, notícia forte mexeu como um tanto de gente deslumbrada, nesta vidinha brasileira de dramas entorpecidos nas mais diversas consciências, sobretudo daqueles que se acham no lugar de organizar a sociedade, pagos a peso de ouro, às custas do sangue e do suor dos cidadãos que lhes delega o poder.
O acontecido nefasto procede do Norte do País, da cidade de Abaetetuba, a 130 km de Belém, Estado do Pará, onde uma jovem de apenas 15 anos, acusada de tentativa de furto, permaneceu encarcerada durante pelo menos 20 dias com mais de 30 homens, submetida a abusos sexuais, violência e estupros seguidos, que só tiveram fim no recente dia 15 de novembro.
Diante desta nota realista murcham as máscaras humanas, ardem as sensibilidades mais empedernidas e clamam aos céus milhares de filosofias e credos, pois não adiantam argumentos perante as ocorrências frias da verdade.
"Era um show isso daqui. Todo mundo sabia que a menina estava lá no meio daqueles homens todos, mas ninguém falava nada", disse uma mulher na delegacia, sexta-feira à noite.
"Antes de comer, os presos se serviam dela", lembra inflamada outra mulher, falando alto bem em frente à sala do delegado de plantão. Refere-se ao fato de os presos obrigarem a menina a praticar sexo como condição para lhe darem alimento. "Ela gritava e pedia comida para quem passava, chamava a atenção para si, e, como ela era conhecida por aqui, não dava para ignorar", afirma outra.
Um espetáculo de horror e conivência imperou naquelas terras por mais de 20 dias, aos olhos da humanidade, representada por quem sabia e calava as sevícias executadas pelos outros presos. Que fase triste da longa história da qual fazemos parte, cada um de nós sendo testemunha privilegiada, refestelados no drama diário dos sonhos da vaidade, feia condição dos seres humanos atuais.
“Nos bastidores do governo federal, em Brasília, existe a convicção de que o caso configura-se em uma das mais graves violações dos direitos humanos, uma ofensa ao Estatuto da Criança e do Adolescente, além de ferir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres,” acrescenta a notícia da Folha On Line, no dia 25 de novembro de 2007.
Tem o que tirar por menos não. A carapuça se encaixa feita luva na cara de todos os que vivem a época, de cara enfiada no aquário das ilusões do egoísmo dominante. O assunto diz respeito a qualquer um. E o tal acontecimento funesto indica detalhe mínimo revelado na mídia, trama pecaminosa das práticas coletivas.
“Os presos até que tentaram camuflar a presença daquele corpo estranho no meio de tantos homens. ‘Minha filha tinha cabelos lindos e encaracolados que iam até o meio das costas’, diz a mãe biológica. ‘Cortaram o cabelo dela com um terçado [facão], para disfarçar que se tratava de uma menina. Cortaram é modo de dizer, escalpelaram a minha filha’. Mas não funcionou”, publica o jornal.
Se era tão flagrante a identidade feminina e quase infantil de L., por que ninguém denunciou antes? "Medo de morrer. Aqui todo mundo tem medo", diz a tia de um dos presos transferidos. "Se a delegada põe uma menina na cela com os homens, e a juíza mantém ela lá, quem sou eu pra denunciar. Aliás, denunciar para quem?"
Eis aqui, por isso, um leve soco nas fuças da acomodação que alimenta o atraso das pessoas, instituições e seus ocupantes eventuais, no rumo da Eternidade.
Emerson,
ResponderExcluireu acompanhei esse absurdo pela TV. Sem palavras. Parece até que vivemos em terras do nunca, em tempos medievais.