terça-feira, 20 de novembro de 2007

Quem aprendeu a andar de bicicleta jamais se esquecerá


Quem aprendeu a andar de bicicleta jamais se esquecerá. Anos depois de parado, basta montar na dita e o equilíbrio se estabelece naturalmente. Pelas ruas do Crato. Do Pimenta à Cruz, do Alto de São Francisco ao Seminário ou descendo deste na direção do Vale do Rio Batateira até o bairro Gisélia Pinheiro. Tem lá suas ladeiras, pois é terra de Pé de Serra. O coração bate mais rápido, a respiração encurta e a pele transpira. Mas ninguém cai. É a regra.

Não é bem um aforismo, pois desprovido de senso moral, mas é uma frase que reconhece a sabedoria popular. Uma vez que se aprendeu a andar de bicicleta jamais......e completa a frase. Como tudo acontece no Crato, houve alguém que assim não se comportava. Muito tempo depois do aprendido, continuava caindo da bicicleta. Moça, linda na estética da juventude, quantos corações se apaixonaram perdidos dada a descorrespondência. Gerou uma enorme discussão. Embora as sucessivas quedas fossem o mote, o motivo sobrejacente era a beleza da jovem, era como uma amplificadora espalhando o eco da excentricidade entre os rapazes.

Teorias? Ih! O Crato nisso é como balaio de frutas descendo dos sítios em direção à feira. Tão cheios ficam que na marcha até o destino, perdas existirão. Teorias curtas e teorias longas, algumas bem estruturadas outras de feitio ajambrado. Por exemplo, atribuir-se um problema de saúde àquela perfeição da criação. Alguém furibundo saltou do banco, com a veia do pescoço estufada, a face em brasa: mais é de lascar. Tem abestado prá dar opinião idiota a respeito de tudo. Pronto só outra teoria.

Mas tinha. O quadro da bicicleta só poderia ser torto, provocando um desvio que levava a moça a cair. Além de quebrar a regra, repeti-la com alguma freqüência. Os curiosos, com os instrumentos que os travestia em verdadeiros engenheiros da NASA, enquanto a moça estava fazendo uma compra e largara a bicicleta na calçada, fizeram as medições e nada havia de errado com o quadro do veículo. Então surgiu a teoria da exceção que toda regra necessita. A moça seria a exceção. Mas não havia paralelo, ela jogava vôlei muito bem, marchava no Sete de Setembro com uma precisão de passos sem igual, dançava nos salões do Tênis com leveza e um ritmo de conjunto musical.

Um grupo de jovens, de natureza conservadora, aventou a hipótese de avisar o pai da moça com a finalidade de proteger aquele benefício que Deus tinha dado à cidade. Mas desistiram, pois teve quem os lembrasse que andar de bicicleta era um dos grandes prazeres que ela tinha. Quem fizesse algo em contrário ficaria na desgraça e toda esperança do improvável que um dia poderia ser possível, morreria de causa precoce.

Então, o mais sagaz espírito investigador resolveu esclarecer o que levava àquelas sucessivas quedas. Como é da natureza desse tipo de gente, logo tratou de observar alguns padrões daqueles acidentes. Depois acompanhou o início do uso da bicicleta até o momento em que o desfecho acontecia. Logo todas as teorias que nasceram da observação foram se transformando em comprovação e finalmente em conclusão.

A que ninguém no Crato tomou conhecimento. A bem da verdade eu tomei, por pura coincidência. Mas foi tão fortuito e sem testemunha que nem deu para coletivizar o que ele descobrira. Isso eu, pois ele ficou mudo, demonstrava não ter qualquer interesse pelo assunto, pois certamente seria pressionado a divulgar seus resultados.
Ele morava naquele prédio de Tomaz Osterne ali na Praça Siqueira Campos. Um dia estávamos lá, numa roda tocando violão, cantando umas músicas, quando todos desceram, inclusive o próprio, para comprar bebida e algo para beliscar. Fiquei cortando uns cajus para amansar a cachaça e quando procurei uma faca numa gaveta, errei de endereço e abri uma outra em que havia um caderno com todo o relato escrito. Para resumir.

As primeiras descobertas. Ela tendia a cair perto da praça Siqueira Campos, normalmente após ter dado umas três voltas na mesma. Embora trafegasse com ar de indiferença, com o rabo do olho percebia o que provocava entre os rapazes que ficavam “babando” por ela. Pouco depois, sem quê, nem para quê, caia.

Mais algumas anotações. A cada volta que dava o equilíbrio daquela Diana sobre a sela da bicicleta ficava mais instável. Uma energia subia pelo corpo dela, ele anotara: sobe e não desce. Parece nascer nos quadris ou um ponto abaixo. Sobe porque é nesta região que os movimentos agitados primeiro surgem, depois se vê a cintura entrando noutro ritmo, logo em seguida os braços ficam esticados e as mãos girando nos punhos do guidom como se estivesse acelerando uma motocicleta. Em questão de segundos um sorriso de satisfação lhe nasce no rosto iluminado. Nesse ponto, o nosso investigador anotou que precisava observar mais seu objeto de estudo, para ver se aquela agitação era a causa da queda como tudo levava a crer e, a partir daí, buscar o que motivava a agitação.

Na página seguinte a primeira conclusão: se restavam dúvidas que ela caia devido à agitação, observei que ela sempre esteve presente antes das quedas. Há um nexo temporal e, portanto, causal entre a agitação e a queda da bicicleta. A agitação sempre vem em primeiro lugar. A contraprova consegui ontem. Enquanto dava as voltas, uma colega de colégio a interrompeu e se demoraram conversando muito tempo. Então ela terminou o passeio de bicicleta sem qualquer agitação ou acidente.

Então apressei a leitura, pois agora só precisava explicar o motivo da agitação e o danado a anotou de modo que levei algum tempo para compreender. Acho que com vocês será bem mais fácil, mas levei uma jornada para entender a mensagem até porque qualquer barulho na escada eu ficava tenso e não conseguia me concentrar.

E ele escreveu assim: os movimentos verticais para promoverem as voltas dos pedais são desprovidos de intencionalidades, mas detentores de recursos friccionais. Nem toda anatomia se adéqua ao desenho do assento, mas se houver uma boa ergonomia, o movimento friccional ocorrerá em cadeia, que fará algo não esperado surgir. É de se ajuntar às provas científicas, que sobre o piso da praça olhares apetitosos davam ao movimento friccional um sentido que de outra forma poderia não existir. Então dessa conjunção de fatores, surge a agitação típica da carne que se materializa como força de intensidade crescente e de uma dimensão tal que deixa o rés do chão cotidiano para atingir a altura em que dos centros genitais vem a possibilidade de se multiplicar e crescer. Sendo assim a regra de que todo que sabe andar de bicicleta jamais se esquecerá não se tornou exceção, assim como aquela de quem provou do prazer a ele sempre voltará, independente das conseqüências.

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