O tempo é convenção. As datas, as horas, os meses. Tudo organizando nossas vidas, nos deixando apressados, tristes ou enlouquecidos. Uma puta convenção. Antiga pra caralho. E fundamental pros ocidentais, como eu. Como você, certamente.
Uma convenção.
George Woodcock, pesquisador da teoria Anarquista, colocou num livro que o tempo era moeda. Na revolução industrial. Os patrões arranjavam um jeito escuso e canalha de alterar os relógios das fábricas para, assim, confundir seus empregados – que eram mais escravos enfiados em máquinas de tear, com seus pequenos ao lado, aturando o cheiro azedo e denso dos imensos galpões insalubres.
Era uma época nova. Os antigos tecelões e agricultores, que tinham uma relação estreita e pura com o tal tempo, estavam desabituados. E bebiam nas horas que lhe restavam. Bebiam, fumavam seus cigarros e perdiam a vida. Elas, as suas vidas, escorriam. Em forma de anos, horas e meses. A vida era dura.
Tempo cruel. Nas mãos de gente cruel. Não dava pra ser diferente.
As datas e as horas não existem. São números que usamos pra definir tudo nessa porra de vida. Isso é complicado. E deveras amplo pra se pensar, quando estamos acostumados à ele. Assim todo dia, mês e ano.
***
A paternidade me deixou desconfortável. Em relação ao tempo. Quer dizer, eu era um cara que sonhava em viver a margem. Ainda que sendo uma mentira deslavada, a doce ilusão de ser dono dessa consciência me trazia conforto. Conferia um certo brilho à minha vida.
Os Reveillons eram pretextos pra beber, fumar e viajar. Era tempo, tempo de folgas. Férias e outros baratos.
Dois em Porto Seguro. Onde o mar estava atulhado de casais que trepavam às escuras e policiais fardados – comigo foi assim. Num desses, em meu traje branco e formal, agachado com um amigo perto das pedras largas e pontudas do Arraial D’Ajuda, acendi um baseado. Tinha sementes e pipocava em nossas mãos. Policiais passaram e não vimos. Nos pediram fósforos, fumaram seus cigarros e fingiram nada ver de errado por ali.
Pareciam tristes. Cansados. Tentaram entabular uma conversa – o que era impossível, já que eu e meu amigo estávamos apavorados e sem graça. O baseadinho apagado entre os dedos, que ficaram rígidos. Trocamos apertos de mãos e eles seguiram adiante. Seus passos eram lentos. Sumiram na contraluz dos fogos que abarcavam aquele céu quase nublado.
Voltamos pra festa. De cara.
Alguns outros na casa dos velhos. Sempre eles. Que nunca souberam ao certo o que fazer com o tempo. Ainda assim, comemoravam. Coisas simples, de quem nunca teve grana pra grandes coisas - ainda hoje se esforçam pra abarrotar nossa mesa com pernis e outras ondas.
Porém, pra mim, carecia de significado. Sempre.
Então busquei outros rumos. Para muitos, estranhos. Foi quando resolvi me trancar em casa. Com uma garrafa de vinho Dom Bosco, um resto de molho Bolonhesa na geladeira – ainda decente – e cigarros. E discos da Rita Lee, na época em que ela tocava com a banda Tutti Frutti. Outros tempos.
Sozinho em minha casa, no último andar daquele prédio vazio, austero e silencioso, descobri que dava pra ser feliz. Assim, tomando vinho e comendo macarrão. Ouvindo a Titia Rita com sua voz límpida e ainda furiosa. Fumando meus cigarros e deitado em minha rede. Tinha também um livro do Henry Miller no peito, mas faltou coragem. Deu meia-noite e fiz um brinde solitário. A data: 31 do último mês do ano.
Eu era senhor do tempo. De meu tempo.
Nada do tumulto da orla. Milhares de rostinhos crédulos voltados pro alto. Esperando os fogos que iluminam e alardeiam o tal novo tempo. Garrafas de Cidra Cereser erguidas e sorrisos. Cervejas em lata e catadores de lixo, espreitando nossas costas.
O tempo não muda.
***
Conto os dias e meses e anos. Do meu filho. Como se ele fosse meu relógio – algo como relógio biológico; um trocadilho besta e eficiente. Ele terá quinze, enquanto eu estarei numa idade tal, provavelmente com longos cabelos brancos, algumas tatuagens e um ar excêntrico demais pras reuniões de pais e mestres. Ou então o contrário, mas com os sonhos pendurados no pescoço.
Conto o tempo através dele. Será assim. Suas férias e aniversários. A primeira foda. Passagens de séries na escola e outros baratos. Dias dos pais, das mães, crianças. Terei de me habituar a essas coisas. E rir – o que será um riso sincero, em se tratando dele. Tudo isso até o dia em que poderei lhe dizer o que acho verdadeiro e essencial. Até o momento em que estaremos conversando e eu, com um olhar resoluto, tentarei explicar de que é feito meu mundo; qual a matéria do meu tempo, do que chamo de tempo.
Espero que ele compreenda, mesmo que resolva não concordar com tudo – o que não deixará de ser fabuloso; comprovando que ele terá suas definições e, por tabela, sua vida no prumo mais desejado. Mas desejo que ele leve consigo um pouco do que me formou como gente, escritor, cozinheiro, mentiroso, sujeito comum, pai. Dentre outras coisas.
Será um tempo bom. Num dia de sol, quem sabe. Num ano que vai chegar em breve: a porra do tempo voa.
Até ano que vem.
porque os cozinheiros são grandes escritores? tempêros devem mexer com a intimidade da alma. me senti no texto. IN-serido. ferido. dentro do tempo meu, teu,nosso - não dos nossos filhos. eles comerão comidas esquisitas, e lerão hologramas em micro telas de lcd onde não caberão nossos nomes exóticos de beira de estrada. tempo escrôto. único. bom? bom.
ResponderExcluirvocê cortou bem fundo mano.
Depois de um tempo fora do ar, por motivos justos, pois aos injustos é também dado o direito de não fazer nada, volto para o cariricult e o encontro do mesmo jeito, ainda bem, com as velhas postagens de lenga lenga, que não saem do canto, como também suas ofertas mais generosas. Sua postagem faz com que eu acredite que nem tudo que passa é causado pela velhice. Que venha mais um ano, pois eu tô irado e armado, a munição é por conta de vocês.
ResponderExcluirUm abraço