terça-feira, 25 de dezembro de 2007

UM TEMPO DE CÃO




Dia de cão. Isso existe. Tudo de adverso ocorre. Cadeia de problemas, isso quem não conhece? Agora é preciso entender que tudo depende do território e do momento da história deste. Na Europa, aí pelo início dos anos 40, tal cadeia era quase uma regra. As pessoas, famílias e populações inteiras estavam nas argolas de tal corrente da infelicidade.

Há pouco mais de um mês Flávio era um homem simples pela vida do Rio de Janeiro. Trabalhava, honrava pais e mães, obedecia as leis da religião e se divertia como todos, afinal ninguém é de ferro. Pois bem, a namorado do Flávio tinha um casal de tios portugueses já velhinhos e muito queridos. O casal viera da terrinha naqueles idos ruins do salazarismo, pré União Européia e, com esforço, sobreviveram nas terras cariocas. Trabalhos infindáveis, cuidados com as despesas e muita poupança. Aposentaram-se, retornaram ao seu amado Portugal, levaram presentes para os parentes, mas não demonstraram exuberância, poderiam despertar falsas ilusões.

O Flávio chegou do trabalho e foi avisado que o bom velhinho tinha sofrido um acidente vascular cerebral e estava necessitado de assistência médica intensiva. Pelo SUS, o Rio de Janeiro se encontra em pior situação que o salazarismo e nada conseguiram. Recorreram à assistência médica privada, mas essa só com grana antes de tudo e de todos. O casal tinha poupança, mas ninguém tinha acesso à conta deles. Nem a velhinha sua esposa sabia o número ou tinha autorização para tal. A parentela inteira teve que arcar com as despesas.

Enquanto isso a senhora começou a deteriorar sua vida de relação. Foi ficando fora do ar e as coisas fora do contexto das coisas. Nem dois dias e a velhinha de repente deixou esta vida para o éden do seu mítico trás-os-montes. A família cuidando de um em coma do qual ainda não retornou, foi cuidar do enterro da tia. Ah! A máfia da funerária.

Carcarás do bico afiado. Um modelo de caixão mais caro que outro. Uma cova que se abre por tantos reais que o Japão já pensa em atapetar seu chão com brita e ferro para que os mortos do Brasil não brotem nos seus quintais. Negociar é a ordem, isso enquanto a deterioração do cadáver se acentua. Finalmente chegaram em algo mais ou menos. Mais menos e voltaram para casa.

Mas carcará voa em todos os lugares. Um vizinho da velhinha era dono de funerária e questionou os preços da concorrência. Abriu um catálogo amarelecido pelo tempo, recoberto com sacos de plástico transparentes e apontou os dedos para as pechinchas. Uma aqui e outra ali, até que no calor da conversação começou a gaguejar. Explicou que ele era assim mesmo, excitado assim falava e continuou a negociação, cada vez mais agitado e engasgando nas cifras e opções, até que caiu duro no chão. Naquele dia mesmo foi prendado com a sua própria mercadoria.

Vida que segue. Aliás, morto que se carrega da capela até os confins dos muros do Cemitério do Caju. Parentes, alguns amigos e os coveiros empurrando o carrinho que passa na alameda principal sob a sombra de frondosas árvores. Mais na frente dobram numa estreita alameda, agora esburacada, sem árvores e uma seqüência quase ao infinito de lápides e túmulos. Lápides quebradas, cruzes arriadas, anjos mutilados, flores murchas, tocos de vela com o pavio negro e oleado.

Nova esquina e outra alameda na direção do sol poente. Estão indo para o canto último, aquele além dos limites do mundo, aquele em que o muro separa o cemitério da favela vizinha. A família, os amigos e os coveiros se equilibram no arruado irregular de túmulos de todos os tamanhos, ora penetrando o espaço da alameda e noutra ocasião deixando pedaços de cimento armado pelo chão, pedaços de tijolos e folhas de tintas descascadas.

Do abandono à ação. Começa um tiroteio nas vizinhanças. O ra tá tá tá das metralhas, os tiros avulsos das pistolas e o féretro se dispersa em busca de proteção. Os coveiros, nem de longe se acostumaram com a morte, correm dela mais que o diabo da cruz. Quando se viu, estavam alguns metros adiante, agachados atrás do mais alto dos túmulos. A família, em desespero, buscava abrigo. Afinal vieram homenagear a morta, não para irem juntos ao paraíso.

Mas uma companhia entre eles resistiu ao medo. Enquanto os medrosos se abrigavam dos tiros que nem vinham nas suas direções, permaneceu impassível onde, deste os primeiros tiros, estivera. O sol expondo toda a cena e no meio da alameda permaneceu sem mover-se um centímetro. Todos agachados, alguns soluçando, outros de olhos arregalados, gente se ajoelhando no cascalho irregular do chão do Caju e só alguém não se movera para nada, apesar dos tiros.

Os coveiros deixaram para trás o carrinho com o caixão e o corpo da tia da namorada do Flávio não tinha ânimo vital para, também, correr das balas perigosas das guerras das grandes cidades brasileiras.

Aconteceu um final.


O corpo ficou sendo enterrado enquanto os acompanhantes deixaram trás os coveiros na tarefa que lhes cabia. Preces, recomendações, jogar pétalas de flores dentro da cova, ninguém precisaria numa situação daquela. Era melhor ir para casa rezar pela morta e para que uma bala perdida não perfure as suas janelas.

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