terça-feira, 15 de janeiro de 2008

CARIRI – A Nação das Utopias (Final)

O Caldeirão das culturas

O Cariri cearense é um dos berços do processo civilizatório sertanejo; é o grande caldeirão das culturas e etnias do Nordeste. Esse processo civilizatório, que se moveu sobre destroços e ossadas gerou uma cultura original que deita raízes nas principais vertentes das culturas ocidentais, notadamente das culturas tapuia, européias (ibéricas e mediterrâneas), norte africanas e afro-brasileiras. A grande riqueza e a grande contribuição do Cariri ao Brasil e ao mundo, não acontece através da cultura letrada e erudita, nem mesmo através do vigor da sua economia ou da sua importância política regional. O ouro dessa região é a cultura popular ou, como preferem os politicamente corretos, as culturas populares que possibilitaram um verdadeiro renascimento artístico - síntese e ensaio de uma brasilidade herdeira do mundo. A cultura cabocla-cariri, nascida da violência e do caos colonial, com seus heróis e suas artes de mil faces, com seus arquétipos e mitos, com sua orgia de forma e de cores, é uma cultura que ensaia uma nação brasileira mestiça e profunda. A cultura cabocla-cariri é, sobretudo, uma cultura generosa, pois nascida da violência e da exclusão se fez encontro e reciprocidade; crescida no múltiplo se fez síntese e, novamente, se afirmou na diversidade.

A constelação

Como expressão dessa cultura, temos as histórias escritas com sangue nas areias do deserto e adivinhadas em versos pelos cegos rabequeiros; as formas de vida modeladas no barro e revitalizadas pelo sopro da beleza; o coração dos homens que, habitando a terra bruta, se faz terno ao ser ferido pelos espinhos da poesia mais agreste; um mundo de realidades sonhadas nos contrastes das xilogravuras que ilustram os milagres e maravilhas da literatura de cordel; o dom dos mil ritmos nas canções dos cantadores ambulantes; os pastoris e caboclinhos cheios de graça e de luz; o encanto dos reisados de Congo e de bailes com suas fitas coloridas e espelhos que refletem o sol; as romarias como caminhos iniciáticos - festas de prazeres e ritos de penitências, onde o povo caboclo-cariri sabe o nome da sua Mãe: N. S. das Dores, N. S. das Candeias, N.S. do Belo Amor... todas uma mesma e Única-Mulher que gerou o mundo e o fez pulsar em um ciclo eterno de mortes e de ressureições. Para esse povo também não existe nenhuma dúvida que o “Bom Espírito” se chama Cícero, assim como poderia se chamar Ibiapina, Conselheiro, Lourenço ou Damião.

A cultura cabocla-cariri se transfigura em arte através de nomes como Patativa do Assaré, José Bernardo da Silva, Dona Ciça Fonseca, Cego Oliveira, Mestre Elói Teles de Morais, João de Cristo Rei, Mestre Aldenir Calou, Geraldo Gonçalves de Alencar, Mestre Ticola, Mestre José Ribeiro, Dona Assunção Gonçalves, Beata Rosinha, Cego Heleno de Nova Olinda, Dona Perpétua, As Três Marias (Maria de Lourdes, Maria do Socorro e Maria Cândido Monteiro), João Alexandre Sobrinho, Waldemar dos Passarinhos, Manoel Caboclo, Zé Gato, Luiz Gonzaga, Mestre Aprígio, José Ferreira, Expedito Sebastião da Silva, Mestre Dedé de Luna, Severino Batista do berimbau de lata, Pedro Bandeira, José Aves de Jesus, Francorli, Mestre Noza, Mestre Tico, Cego Aderaldo, Joaquim Mulato, Mestre Zulmira, José Lourenço, Mestre Severino do sítio Cabaceiras, Chico Mariano do Casimiro Coco, Dona Ciça do Barro Cru, Maria do Barro Cru, Nego, Madrinha Dodô, Mestre Sebastião Cosmo e Dona Fátima, Mestra Margarida, Geraldo Amâncio, Cizin, Dona Maria dos Benditos, os Irmãos Aniceto (Chico, João, Antônio, Raimundo, Benedito, Cícero e Britim), Walderedo Gonçalves, Zé de Matos, Mestre Miguel Florentino, Mestre Manuel Graciano, Mestre Nino do Crato... nomes, nomes, centenas de nomes que flutuam ao sabor da memória, como estrelas no céu. Se nas grandes constelações, apenas algumas estrelas são identificadas e nomeadas, milhões de outras estrelas anônimas não deixam de brilhar e de fazer mais belo o mundo. Assim também é a cultura tradicional de um povo - luz e trevas de toda a humanidade.

A esses homens e mulheres eu devo a minha arte mais profunda - o sonho. Devo também o nome pelo o qual eu me anuncio ao mundo: Cariri.

Rosemberg Cariry

Fortaleza, 5 de março de 200l

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