quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A Chama dos Velhos Carnavais




Há alguns anos, no assassino desmoronamento do edifício Palace II , no Rio, entre os oito mortos, havia uma mocinha que foi surpreendida, no interior do seu apartamento, quando tentava salvar a fantasia de carnaval que usaria no desfile do outro dia. Quão importante aquela festa para a mocinha que, ao invés de tentar resgatar bens mais duráveis, buscou desesperadamente salvar a sua fantasia! O Carnaval, que nos chegou com os portugueses ,aportou no Brasil como expressão máxima do anarquismo: festa onde cada um se fantasiava do que bem lhe aprouvesse, onde os escravos encharcavam os senhores e os súditos ridicularizavam os reis. Tudo era permitido naqueles quatro dias de trégua dos homens com o seu poder, seu status quo e suas regras sociais. Certo que, com o tempo, o capital começou a pôr leis e fronteiras na essência anárquica do Carnaval, vieram as arquibancadas, os cordões de isolamento, os trios elétricos, os abadás e a grande expressão da cultura brasileira foi se tornando burocrática, com uma alegria medida, uma transgressão controlada, uma anarquia regulada. Os reis já não se misturam com os súditos, os senhores já não se mesclam com seus escravos... o aparthaid brasileiro já não tem sequer um dia de trégua!
Soube de um tempo em que o Carnaval cratense tinha o doce sabor original dos velhos reinados mominos. Um tempo em que o Corso percorria toda a Rua do Commercio, em meio a guerra de serpentinas e confetes, entre pierrôs e colombinas que se espalhavam por toda avenida ou se encastelavam nas janelas dos velhos casarões e que , à noite, terminavam no baile carnavalesco no Clube Cariri, ali pertinho na Rua Formosa . O Lança-Perfume , na época, era um mero aromatizador e fazia as moiçolas lacrimejarem quando respingava nos seus olhos escondidos por trás das máscaras e corpos contidos pelos espartilhos. Vivi, depois, um tempo em que blocos organizados e Escolas de Samba desfilavam por toda a cidade e onde o Carnaval tinha seu apogeu nos Assaltos do Crato Tênis Clube, bailes comandados por figuras emblemáticas e inesquecíveis como Valdir Silva e Zé Maia e que terminavam, na madrugada da ingrata quarta-feira, em plena praça Siqueira Campos. Tempo que tão genialmente foi depois eternizado em dois frevos do nosso Abidoral Jamacaru. Época em que boêmios da nossa mais alta society roubaram, no romper do dia, um pato da Fonte Luminosa da Praça da Sé e foram saborear o petisco, após ser apetitosamente preparado pelas sábias mãos de Canena . O furto terminou em tanto alvoroço que rendeu uma Marcha:


“Levantaram um “falso”chato
Ao novo Clube das Rosas,
Só porque sumiu-se um Pato,
Lá da fonte luminosa”...
Quem paga o Pato?”

Depois o Carnaval cratense foi pouco a pouco esmaecendo, um pouco a cada ano, um tanto a cada gestão municipal. As poucas pessoas mais aquinhoadas arrefecem sua chama foliã nas praias do litoral e os foliões incorregíveis buscam Recife-Olinda que ainda conservam, como em um Museu, a chama inquebrantável dos velhos Carnavais. Ao povão resta seguir com seu eterno destino de escravo, sem poder sequer um dia mimetizar-se de marajá, de príncipe, de Rei. Resta-lhe tão-somente a velha e surrada fantasia de palhaço. Quem quiser um dia resgatar a nossa essência como cidade, terá que , necessariamente, resgatar nossos antigos e inesquecíveis carnavais. Precisamos trazer à tona a mesma chama que fez aquela mocinha , com todo perigo desse mundo, entrar no edifício que desmoronava, na vã tentativa de salvar sua fantasia para o Desfile do Carnaval...


J. Flávio Vieira


Foto: Arquivo Jurandyr Temóteo

Republicado sob instigamento de Armando Rafael

4 comentários:

  1. Adorei a matéria!
    Também pudera ...sou testemunha dos carnavais antigos!
    Na infância, dançar carnaval era pecado mortal! Meu pai comprava lança-perfume, e a gente cheringava no povo da rua, até secar...até o cheiro ficar fora do ar!
    Os corsos eram fantásticos.Corria pras esquinas...Era o desenho animado dos meus contos de fadas!
    Os jepes e automóveis sem capotas... cabia mais gente, do que se podia contar!
    Máscaras...todos de máscaras!
    Elas permitiam a mistura, no mesmo espaço de moças de vida livre, e moças de família....Achava o máximo!
    Na década de 60, já adolescente ,carnaval continuava proibido...Fugia para a concentração dos blocos,nas calçadas.Suspirava de vontade...mas só podia cantar e dançar um frevo, no mental!
    Em 70,80...participei dos meus primeiros bailes ,no Crato Tênis Clube.Meu pai, por anos seguidos,foi Diretor Artístico, e cabia-lhe a missão de decorar o clube para o carnaval.Pintava todas as paredes com imagens de colombinas,pierrot,arlequim,mascarados,rumbeiras,ciganas,piratas...o diabo a 4!Ficava lindo!
    Era muito bom dançar com todos, e não ficar com nenhum!
    Geralmente, debaixo de chuva,na quarta-feira de cinzas,acompanhávamos a orquestra até a Pça Siqueira Campos dançando e cantando o último frevo...O frevo da quarta-feira ingrata, que chegara depressa demais! Depois, ainda de fantasia, entrávamos na Igreja pra receber a " cinza".Nosso lado profano fôra alimentado... até os pés ficarem cheios de calos, e a voz rouca, sem proferir , sequer um som...
    "Saudade/ é isso que a gente sente/saudade/é falta que faz a gente/alguém que partiu/alguém que morreu/alguém que o coração não esqueceu..."
    Pois é...Carnaval comum, nos dias de hoje é ficar plantada na frente da televisão, e assistir o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.Pipocas, sem risos...!

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  2. * ops
    Ciganas, piratas...o diabo a 4!

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  3. Zé e Socorro: eis uma coisa que não vivi. Será que tudo aconteceu depois que peguei o trem para a capital? Lembro de alguns bailes no Tênis e na AABB, mas nada marcante. Aliás lembro de uma noite, muito remota, uma radiadora (vige que nome mais antigo) soltando as marchinhas de carnaval e algum baile no clube da rapadura. Agora sabe o que me lembro de lembrar o que era carnaval no Crato? Apenas aqueles apitos que os motoristas de praça punham na saída do cano de escapamento.

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  4. O Zé do Vale escapou um pouco mais cedo para Fortaleza e depois para o Rio no finalzinho dos anos 60.Nos 70, tínhamos um Carnalval de Rua interessante e o do Tênis Clube super animado. Morava em Recife mas todo carnaval estava aqui( e vejam lá o tamanho da concorrência). Já nos 80 a coisa arrefeceu e todo mundo foge ou pra praia ou pra folia em outros lugares.

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