domingo, 6 de janeiro de 2008
A festa do Menino Deus
Na brincadeira da Lapinha, os meninos que representam os "Caboclinhos de Aldeia", uns indiozinhos que vêm visitar o Menino Jesus, cantam os seguintes versos:
Passa o sol pela vidraça
Já passou sem tocar nela
Assim foi a Virgem Pura
Levou luz, ficou donzela.
Certamente foram os padres catequizadores que colocaram índios na cena de adoração do Presépio, entre Pastores, Ciganas, Anjos, Borboleta, Beija-flor, Reis Magos, Sol, Lua e Estrela. Mas não deixa de ser extraordinário que a imaginação do povo tenha criado esses versos tão perfeitos para explicar o Mistério da Encarnação, segundo o qual Maria engravidou virgem, por obra e graça do Divino Espírito Santo. Mais extraordinário é que sejam os indiozinhos que cantem os versos em meio a louvores e oferendas de mel, frutas e flores.
Os vários brinquedos do ciclo natalino ainda sobrevivem em regiões do Brasil, sobretudo no Nordeste. O jornalista Diogo Mainardi escreveu que a cultura popular é uma desgraça brasileira, responsável por parte do nosso atraso. Mário de Andrade, Câmara Cascudo, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre e muitos outros não pensaram assim. Mário e Cascudo dedicaram parte da vida ao registro de danças, músicas, falas, gestos, tudo o que chamamos de cultura popular. Eles, ao contrário de Diogo Mainardi, acreditavam que somos riquíssimos, donos de um invejável tesouro herdado dos povos que nos formaram.
Triste de quem não possui memória. O conhecimento da própria história e o uso da cultura tradicional não significa conservadorismo. A cultura é um bem comum a todos os homens, como a água que bebemos e o ar que respiramos. E ela se transforma numa dinâmica incessante, ora sofrendo perdas ora acréscimos. Conservadorismo é desejar que ela permaneça guardada, fixada, imóvel. Os artistas populares são os maiores exemplos da antropofagia de que falava Oswald de Andrade: nunca se envergonham de incorporar elementos novos à arte que produzem. São contemporâneos e transformadores.
Num reisado do Cariri cearense, registrei esses versos, cantados durante a cena em que os guerreiros pedem para abrir a casa onde irão celebrar a Festa de Reis:
Abre a porta, gente!
Que eu venho ferido
Pela falsidade,
Tão grande,
Dos meus inimigos.
Se tu vens ferido
Chega pra dentro
Sangue de teu peito,
Jorrando,
Serve de alimento.
É belo. E nos comove imaginar que é uma canção de autoria anônima, lapidada ao longo dos anos, como vários poemas clássicos da tradição judaica, grega, árabe, celta e indiana.
O legado artístico da tradição cristã é inesgotável, e inclui desde composições de Bach a pinturas de Leonardo da Vinci. E um vastíssimo patrimônio sem assinatura, pobre apenas na aparência, como o Menino Jesus que celebramos no Natal. É a Ele que louvam as alegres ciganas, nas brincadeiras pastoris:
Já avistei a lapinha
Toda cercada de luz
Onde está o Deus Menino
Onde está o meu Jesus.
Feliz Natal!
Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente.
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