domingo, 6 de janeiro de 2008
Uma mera notícia de jornal
Deu hoje no Jornal: “ O IML de Fortaleza sepultará, amanhã, às 09 H, os corpos de 20 pessoas não reclamadas por seus familiares; destes cinco haviam sido identificados e mesmo assim não foram procurados”. Parece uma notícia simples , despretensiosa, destas que o leitor, quando olha, degusta-a num só relance e passa a página em busca do Caderno de Economia. Notícias assim, quando muito, acicatam nossa curiosidade, mas , se apreciadas, são esquecidas imediatamente. Parece-nos sempre que deve ficar para os coveiros, os agentes funerários, as carpideiras e demais abutres que vivem a sobrevoar cadáveres com um mórbido e inexplicável prazer.
Detenhamo-nos, um pouco, na notícia. É que precisamos aprender que as grandes questões da nossa existência estão sempre escondidas nas esquinas mais desinteressantes, nos becos mais soturnos, nos interlúdios e nas entrelinhas da vida. As grandes manchetes carregam em si, em geral, um fogo de palha: grande e fugaz inflamabilidade . Alimentam os comentários de um dia, de no máximo uma semana e , logo depois( se muito) ilustrarão as páginas esquecidas de um livro de história.Para entender a essência do nosso tempo , os tortuosos e ínvios caminhos perlustrados pela humanidade, é preciso se deter nas notícias de rodapé, nas pequenas chamadas de fundo de página; aquelas que já não tocam os homens comuns embotados pelo cotidiano, petrificados por aquilo que se convencionou chamar modernidade.
Talvez o leitor sequer tenha se apercebido : quinze seres humanos serão enterrados sem que se saiba absolutamente nada das suas vidas. Como diz o ditado chinês: são quinze bibliotecas que se incendeiam , sem que fique qualquer mínimo relato do seu acervo. Pior , sem que haja uma mínima referência : uma lágrima saudosa de um filho, um comentário de um amigo, uma rosa lançada por um colega, a chama de uma vela atiçada por um ente amado, nada... A única solidariedade que conhecerão será a dos outros 14 companheiros : unidos pelo silêncio, pelo esquecimento, pelo inglório destino de nunca ter sido e agora já não ser...Do pó ao pó... Ao menos se livrarão dos elogios inúteis, das orações mastigadas às pressas e das rixas dos inventários . Se pudessem talvez estivessem zombando dos outros cinco , os que foram identificados, e tiveram nomes lançados na imprensa mas sem que qualquer parente tenha se dado ao incômodo de procura-los e proporciona-los um enterro mais digno. Todos irão à vala comum, no Caixão das Almas, sem uma prece, um gemido, um lamento: bem pior que o sepultamento de alguns animais de estimação.
O leitor agora deve ter despertado: pensava-se que coisas assim só existiam nas batalhas, o que é uma ampla, completa e cristalina verdade. O problema é que fomos mudando a conceituação de guerra , hoje ela pouco se faz nos campos de combate, ao contrário, foi se imiscuindo no nosso dia-a-dia. Vivemos em eterna guerrilha: com nossos filhos, esposa, vizinhos, colegas de trabalho e de profissão, com os transeuntes, os outros motoristas, contra os trombadinhas , os descuidistas, os hackers. Tanto nos digladiamos que começamos a ver todos como inimigos a serem destruídos ou imobilizados. Já não temos amigos, mas companheiros de conveniência; já não possuímos colegas mas concorrentes; até o amor hoje tem código de barras. Agora somos solitários na multidão, como se o Homo sapiens tivesse se subdividindo em imensas outras espécies e raças.
Assim, os 20 seres humanos que hoje serão inumados, solitariamente, são apenas baixas nessa batalha moderna. Não foram procurados porque são tão somente soldados inimigos abatidos. Não representam absolutamente nada: perfazem uma mera estatística. Vão à vala comum, sem honrarias, sem medalhas e sem toque de silêncio. E foi, sonhando com um mundo melhor, que fiz este texto, como um simples Monumento a estes 20 soldados desconhecidos.
Não podemos medir ao certo quantos poderão ver esse monumento, mas eu o vi. E agora esses “20 soldados desconhecidos” fazem parte de uma outra luta. Rendo minhas homenagens a esse monumento e essas 20 ilustres almas desconhecidas que deixaram de fazer parte de uma “mera notícia de jornal” para servir ao propósito dos que sonham por um mundo melhor.
ResponderExcluirobrigado Dr. por mais esse alento.