sábado, 23 de fevereiro de 2008

JÁ VAI TARDE

Abaixo, o início de ampla matéria publicada na "Veja",edição 2049, que começa a circular amanhã:

Cuba
Um país de muito passado agora tem algum futuro

O ditador entrega o comando direto do país ao irmão, abre caminho para mudanças, mas fica ainda como um fantasma assombrando o povo e preservando sua tenebrosa herança


Diogo Schelp

Reuters
Fidel Castro

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Artigo - Reinaldo Azevedo: Fidel e o golpe da revolução operada por outros meios
Exclusivo on-line
Perguntas e respostas: Cuba sem Fidel

Em 1953, levado a julgamento pelo crime de ter enviado seus primeiros seguidores para um ataque suicida a um quartel, o jovem advogado Fidel Castro Ruz assumiu a própria defesa e o fez de forma magnífica. Antecipando a retórica magnética, grandiosa, arrogante mas farsesca que o caracterizaria pelo resto da vida política, disse aos juízes: "A história me absolverá". Passou-se mais de meio século e, aos 81 anos, conceda-se, Fidel está diante do tribunal da história. Visto o sofrimento que infligiu ao povo durante 49 anos como senhor absoluto de Cuba, a absolvição está fora de cogitação. Cabe recurso? Não dá mais tempo. Fidel está em fase terminal de uma grave doença e, na semana passada, anunciou que não mais concorreria à eleição indireta que escolhe o presidente e o comandante-em-chefe das Forças Armadas.

Seus apaniguados viram o gesto como prova de desprendimento do comandante e evidência de modéstia e renúncia pessoal em benefício da pátria. Tudo encenação. Nem que quisesse, a saúde debilitada e a velhice lhe permitiriam candidatar-se a algo mais do que uma vaga no jazigo dos heróis na Praça da Revolução. Diante de uma impossibilidade finge que está por cima. Vintage Fidel. Clássico Fidel. Vai anunciar o corte da cota de leite para a população adulta de Havana? Diga à multidão que não faltará leite para as crianças. Vai ter de recuar, desmontar os mísseis atômicos soviéticos e devolvê-los a Moscou? Diga que Cuba é soberana e pode ter as armas que quiser: "Os mísseis se vão. Mas ficam todas as demais armas" – como se isso fosse algum consolo. Mas as massas vão acreditar. Foi pego exportando terroristas para insuflar a subversão em outros países? Diga que, se quisesse mesmo fazer terrorismo, Cuba produziria "excelentes terroristas, e não esses incompetentes que foram presos". Está difícil explicar a miséria franciscana da economia cubana? Diga que quem está mal são os Estados Unidos ("os ianques estão falidos"), o Japão ("tenho pena dos japoneses") e a Europa ("o velho continente está esgotado"). Está prestes a morrer, não consegue caminhar nem discursar? Diga que vai apenas mudar de posto, mas que o combate continua.


Reuters
DAVI E GOLIAS
Enquanto Fidel reinou, os Estados Unidos tiveram dez presidentes. O clima de confronto com o vizinho poderoso fortaleceu o poder do ditador, que pode posar de Davi na luta contra Golias. Fidel em piscina em visita à Romênia, em 1972, e, abaixo, americanos assistem a discurso de Kennedy durante a crise dos mísseis, em 1962
Time & Life Pictures/Getty Images

Todo político tem de ser bom mentiroso. Para ser Fidel é preciso, no entanto, ser um grande farsante. Ele é um dos maiores que a história conheceu. É presidente de uma nação paupérrima, mas vive como um cônsul romano que come lagostas quase todos os dias? Negue: "Temos as lagostas mais doces do Caribe, mas não as comemos. Trocamos por leite para as crianças". Vive cercado de um aparato de segurança que parece um bunker ambulante? Invente que é um homem simples que às vezes anda só pelas ruas, como um filósofo peripatético absorto em uma paisagem idílica: "Outro dia, no México, ia só pela rua, só como uma pomba...".

Desde os primeiros momentos da revolução que o levou ao poder, em janeiro de 1959, Fidel mostrou a utilidade política de um grande fingidor. Quando começaram os julgamentos sumários com o objetivo de criar um clima de terror e matar os inimigos, e até alguns amigos políticos, Fidel não aparecia como carrasco (esse era o papel do argentino Che Guevara) nem como juiz. Fingia não se envolver. Em uma aparição famosa, ele vai ao tribunal do júri e faz um discurso mercurial: "Que esta revolução escape da maldição de Saturno. E que é a maldição de Saturno? É o dito clássico, o refrão clássico de que, como Saturno, as revoluções devoram seus próprios filhos. Senhoras e senhores deste tribunal, que esta revolução não devore seus próprios filhos". Lindo? Sim, mas era uma farsa. Naquele mesmo dia, dois jovens combatentes comunistas urbanos que não lutaram na guerrilha rural de Castro foram condenados à morte. A revolução devorava alguns de seus próprios filhos. Mas o que ficou? O discurso inflamado com referências eruditas. Funciona sempre? Não. Funciona em Cuba, que tem Fidel e algumas outras características que ajudam esse tipo de farsa a passar por verdade. Ajuda muito banir a imprensa, dominar a televisão e o rádio, proibir a entrada de jornais estrangeiros no país e impedir os cidadãos de viajar para o estrangeiro. Ajuda enjaular por tempo indeterminado, e sem juízo formado, toda a oposição. Ajuda muito abolir as liberdades individuais e ser o ditador de uma ilha, um país-cárcere. Eis a grande obra de Fidel Castro em meio século de governo. A história o absolverá? Difícil.

O DESESPERO
Cubanos fogem para os Estados Unidos em um caminhão da década de 50 transformado em balsa, em 2003: 78 000 pessoas morreram na tentativa da travessia



2 comentários:

  1. Outro tópico interessante da matéria de Veja:
    "Quem pôde fugiu. Há 2 milhões de exilados – um em cada seis cubanos vive no exterior, uma proporção de exilados maior que a existente no Afeganistão, país devastado por trinta anos de guerra civil. O governo de Fidel Castro é agente do maior fracasso material da história das ditaduras latino-americanas. O comunismo foi formalmente estabelecido em abril de 1961. A economia planificada foi um desastre imediato. O racionamento de alimentos, que ainda persiste, começou no ano seguinte. O salário médio de um trabalhador cubano equivale a 10 dólares. A produtividade dos canaviais de Cuba, que já foi o maior produtor mundial, hoje é de 27.800 quilos por hectare, um índice baixíssimo. No Brasil, é de 73 900 quilos.

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  2. Carta ao leitor
    Fidel já vai tarde

    AFP

    Na semana passada, quase meio século depois de implantar em Cuba uma versão comunista do velho caudilhismo ibero-americano, Fidel Castro anunciou sua renúncia dos postos mais altos da hierarquia da ilha, a Presidência e a chefia das Forças Armadas. Não se enxergue no gesto nenhuma generosidade ou desprendimento. Fidel saiu porque está em fase terminal de uma doença grave. Fôlego tivesse, os cubanos ainda teriam de suportá-lo por mais tempo, adiando sabe-se lá até quando a tentativa de retornar à vida normal em uma sociedade aberta.

    Quem mais sofreu sob Fidel Castro foram os cubanos. O ditador matou quase 10.000 pessoas ao cabo de julgamentos sumários. Mais de 2 milhões fugiram para o exterior. Os outros 11 milhões que permaneceram cativos vivem há décadas em estado de penúria moral, miséria física e desesperança, o cardápio clássico das ditaduras. Mas a renúncia do ditador é uma boa notícia também para outros países latino-americanos. Durante décadas, Fidel foi a fonte geradora de utopias enganosas às quais gerações de latino-americanos se agarraram, a maioria em boa-fé, como alternativa para sair da miséria, que viam como resultado da exploração e do desprezo dos Estados Unidos. Há muito tempo, porém, ficou evidente que as origens do atraso nos países da América Latina deveriam ser buscadas nas próprias decisões erradas que aqui se tomavam. Em muitos países essa dedução lógica redundou em pouca ou nenhuma ação na direção correta, em grande parte pela reação raivosa dos movimentos de esquerda inspirados na utopia farsesca de Fidel Castro com suas bandeiras de "Não às reformas burguesas!", "Não às privatizações!"...

    A mais extraordinariamente burra dessas bandeiras igualava a um vendilhão da pátria o governante que insistisse em honrar a dívida externa. No Brasil tentou-se até convocar um plebiscito para obrigar o governo a dar o calote na dívida. Fidel não perdia uma chance de incentivar essa e outras bandeiras populistas. É auspicioso constatar que, na mesma semana em que o caudilho saiu de cena, o governo brasileiro anunciou a morte da dívida externa. Pela primeira vez na história, a diferença entre a dívida e os ativos brasileiros no exterior é positiva para o Brasil em 4 bilhões de dólares. Essa situação confortável abre caminho para uma convivência com nossos parceiros comerciais ainda mais vantajosa para nós. O Brasil chegou a ela porque vem fazendo na economia justamente o contrário de tudo o que preconizam Fidel e seus seguidores. Por essa e outras razões é que brasileiros e outros povos latino-americanos podem dizer com a boca cheia que ele "já vai tarde".

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