sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

A Várzea Alegre




Várzea Alegre é possivelmente a mais bem humorada cidade do Cariri. Difícil ver um varzealegrense trombudo , de cara amarrada. Qualquer rodinha de praça, basta se acercar para se perceber alguém contando uma potoca, uma presepada e rindo da própria desgraça ou do infortúnio alheio. Talvez por isto mesmo seja seu povo tão umbilicalmente ligado à sua vilinha. O sujeito ganha o mundo – e nossos varzealegrenses têm esta sina de judeu --- mas simplesmente nunca em verdade sai da beira do Riacho do Machado. Qualquer oportunidade está de volta. Ganha um dinheiro a mais e retorna, às carreiras, para aplicar na terra prometida. Férias ? Que diabos de Europa lá nada ! Pica à toda para a deliciosa terra de Papai Raimundo. Por nunca abandonar emocional e espiritualmente a terra natal, varzealegrense que se preza, também, não se contamina com sotaques alienígenas. Conheci caboclo que saiu ainda menino do Sanharó, para São Paulo e depois de quarenta anos distante do torrão natal, falava o bom e adocicado dialeto nordestino, sem história de “uais” e de “carambas”.Talvez por isto mesmo a vila conserve, historicamente, o mais animado carnaval caririense . É que o Reino de Momo carece de despojamento, de irreverência, de alegria. Várzea Alegre é o Cariri com os dentes à mostra, o sorriso escancarado do Sul do Ceará.
A cidade ri primeiramente dos seus contrastes. E nisso se mostra única. Estes contrastes são escarafunchados por todos e guardados cuidadosamente no baú da memória popular. Dizem que começa já pelo nome: não é Várzea e nem Alegre. Aí segue um sem número de disparidades. A porta da catedral é de ferro e a da prisão , de madeira. O cabaré fica na Rua da Paz e o presídio na da Liberdade. A cafetina mais famosa daquelas paragens se chamava Maria Justa e as meretrizes mais perseguidas carregavam nomes que beiravam à santificação: “Santinha”, “Mocinha” e “Das Virgens”. Num dos bares mais importantes da cidade ( pasmem vocês) ocorreu um incêndio na geladeira e que só foi apagado, pela improvisada brigada de incêndio local, quando se utilizou um tamborete. Anos atrás na Semana Universitária Varzealegrense ( SEMUVA) organizaram um campeonato de futebol de salão e sabem quem ganhou ? O valoroso Time do Mobral. Não bastasse isso, anos atrás, o rabecão da polícia chegou com a placa de Boa Viagem: o sujeito preso dentro, na maior sugesta, e aquela placa desejando estranhamente uma Boa Viagem ! Em tempos passados, quando juiz era um cargo eminentemente masculino, a cidade tinha a sua primeira juíza e também o querido Padre Otávio que já viúvo se ordenara. Alguém vindo do sítio queria falar com o juiz e disseram, para sua surpresa, que ele não podia atender pois estava na Maternidade, buscou o padre na igreja e quase cai quando lhe informaram que ele tinha ido deixar os filhos na escola. “Zé Grande” é um dos anões da vila e “Meninim”, um gigante que poderia jogar num time de basquetebol americano. Estes contrastes se apinham aos montes e dariam um livro volumoso que ainda precisa ser cuidadosamente compilado.
A cidade assim vive prenhe de figuras irreverentes e espirituosas de chiste armado, de piada na agulha. Lembro de uma infinidade deles: O velho Vicente Vieira, Zé Odimar , Zé Clementino, Zé Gonçalves, Emílio Alves Ferreira, Henrique Hipólito, Neguim, os dois Manuéis Vieira, André e Joãozinho Batista, Assis Monteiro, Zé Vieira, Padre Vieira, Expedito e Afonso Salviano, Jotinha, Zé Bedeu e tantos, tantos outros que ajudaram a tornar esta vida menos pesada , menos séria e menos chata. Afinal não se deve levar em alta consideração uma viagem sem volta em que começamos a primeira estação nus e chegamos à última de alforjes perfeitamente vazios.
Em homenagem a tantos humoristas do nosso cotidiano é que vou narrar os dois últimos contrastes da querida terrinha. O primeiro vem do Sítio Calabaças. Dois amigos ali viviam e eram mais desmantelados do que carga de fato em cambito. Jesus e Pedro gostavam e ir a uns sambinhas juntos e ,de vez em quando, corria uma mão de lambedeira. Bastava uma dama saltar um cavaleiro. Dia desses , nosso Jesus resolveu tirar uma moça para dançar e ela recusou sob a clássica alegativa de cansaço. Não bastasse este desaforo, caiu na besteira de aceitar, logo depois, ir saracotear no salão com um outro par. Com a impensável agressão, abriu-se, de imediato o arranca-rabo e o saldo foi terrível. Pedro matou um dos combatentes e Jesus cortou a orelha do sujeitinho que resolveu lhe desacatar bailando com a moça. No outro dia, o comentário era geral. Em Várzea Alegre, tudo é diferente: na Galiléia o discípulo Pedro cortava a orelha de soldado e Jesus emendava. Aqui Pedro mata o povo e Jesus corta orelha !

Outra. Recentemente um rapaz retornou a Várzea Alegre, trazendo alguns cobres do Sul e resolveu investir na sua terra natal. Montou uma Casa de Eventos. Na realidade uma latada grande, cujo cordão de isolamento era uma cerca de grossas estacas e com nove fios de cordas de nylon que envolviam toda área da Casa. Pois bem, no sábado houve , por fim, a inauguração. Uma festa de arromba , com dois sanfoneiros , trianguistas, zabumbeiros. De repente, começou um vuco-vuco no meio da latada. Empurra daqui, tapa dali, um dos agressores tentou puxar uma faca da cintura, só que sacou junto com bainha . No meio do sururu, a faca caiu no solo, antes de ferir alguém. Vários competidores pularam no chão tentando pegar a arma branca. Enquanto isto o povaréu tentava fugir da confusão, mas como ? As fortes cordas da cerca de isolamento não deixavam. No puxa-empurra-derruba um sujeito consegui pegar a lâmina e um outro ficou só com a bainha. O que estava apenas com a bainha deu de garra de uma cadeira de Bodocó e lascou na cabeça de um dos brigões. Bateu seco e o cabra caiu revirando os olhos e no mesmo dia fez a viagem derradeira. Já o que pegou a lambedeira, correu, cortou as cordas e liberou todo o povo que angustiado tentava escapar da batalha. No outro dia, os comentários na cidade resumiam perfeitamente a vocação contrastante de Várzea Alegre.
--- Rapaz, só em Várzea Alegre mesmo ! O cabra que tinha a bainha matou um , já o que estava com a faca, salvou todo mundo. Pode ?


J. Flávio Vieira

3 comentários:

  1. Zé,
    Que ótimo viajar pra Várzea Alegre, através de você.
    Cidade que o meu coração elegeu, nos tempos de adolescência.Queria ter envelhecido meus sonhos, por lá...Mas, tudo ficou tão distante ... !
    A Várzea do arroz...Só alegria!

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  2. Mais uma obra-prima desse cronista de mão-cheia e grande historiador dos costumes locais. Não obstante, uma bem humorada homenagem a esta aprazível urbe caririense.
    Valeu, Zé!

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  3. Obrigado por terem gostado do texto, Várzea Alegre é nossa Matozinho mais próxima.

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