quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Yoñlu


Vínicius Gageiro Marques era um menino de 16 anos, alto e vistoso, aparentemente normal. Amava o Radiohead, os Mutantes e Vitor Ramil. Inteligentíssimo, um superdotado, tocava vários instrumentos e havia até gravado um CD com suas composições . Filho de um professor universitário do Rio Grande do Sul e de uma psicanalista foi educado em francês e falava fluentemente o inglês. Nas aulas, usava sempre os fones de ouvido, não escrevia nada e nem ouvia os mestres e simplesmente passava por média em tudo. Tirante isto Vinicius carregava consigo, inaparentemente, fantasmas e espectros que o perseguiam sem cessar. Fazia tratamentos especializados, mas por mais de uma vez tentara suicídio, até ter consumado o ato em 26 de Julho de 2006. Podia ser mais um destes casos desesperados de adolescentes autodestrutivos que têm pululado no mundo todo, não fosse por um pequeno detalhe. Vinicius vivia praticamente na Internet, num mundo virtual, talvez mais colorido e dourado que o real à sua volta. Teve, assim, uma ajuda direta, com acompanhamento pari passu do todo o processo, através de um site ( e existem já tantos !) que incentiva, acompanha e ensina meios mais práticos de se chegar à solução final. Uma espécie de Centro de Valorização da Morte. Yoñlu , este era o nome de Vinicius, no mundo virtual , projetou cuidadosamente todo o ritual do fim, com a ajuda de vários internautas anônimos que assistiram on line à sua asfixia por monóxido de carbono. E foi um destes amigos das sombras , no Canadá, que avisou à polícia que nosso Vinicius, por fim, tinha conseguido seu intento desesperado. O mais preocupante de tudo : o caso de Vinicius não é pontual. Existe uma verdadeira indústria de Suicídio.com na WEB. No Japão , em 2005, houve um aumento de 70% nos suicídios ligados à rede, 91 adolescentes se mataram. Em 2006 houve três episódios de suicídio coletivo de jovens( com treze mortes), combinadas na Internet. Na Grã Bretanha, no ano passado, foram constatadas vinte e sete mortes devidamente incentivadas pela rede mundial de computadores. A função de qualquer cronista , mesmo os rabo-de-galo como eu, é o de fuçar tendências, o de revolver o cascalho, como um garimpeiro paciente, tentando encontrar a pepita no fundo da bateia. A grande pergunta da atualidade é esta : Afinal que mundo estamos legando aos nossos filhos e netos ?Permitam-me encher um pouco o sábado de vocês com algumas elucubrações dolorosas. O aumento dos casos de depressão na humanidade , nos últimos tempos, é uma constatação científica insofismável. Estima-se , por outro lado, que mais de 60% da tragédia suicida se deve a episódios depressivos. Por que o planeta tem se tornado menos respirável ? Acredito que a questão é multifatorial , mas vou arriscar a pôr um pouco da minha goma neste angu indigesto. Primeiro a população planetária, desde a Revolução Industrial, tornou-se, paulatinamente, mais urbana que rural. Fomos perdendo o contato direto com a natureza que nos imantava continuamente de sua energia. Depois, vivendo em megalópolis, passamos a conviver com a mais terrível das solidões : a soletude da multidão. Os pais , assoberbados a cada dia pelo trabalho, não mais convivem os filhos que terminam sendo criados pelas creches, pela TV, pela Academia, pelo Computador. A sociedade de consumo iniciou uma corrida desenfreada em busca de um Shangrilá de superfície e são jogados todos nesta gincana desesperada. Não existem mais amigos, parentes, colegas, só guerreiros em contínua competição. Como em qualquer modalidade esportiva ,sempre são poucos os vencedores e muitos os perdedores. Vão se amontoando, pelas esquinas da vida, um sem número de inconformados que não conseguiram galgar o Everest de suas aspirações grandiosas, seja porque não aceitaram as regras do jogo ,seja por não se adaptarem aos critérios draconianos. Um mundo profundamente materialista não tem lugar para os artistas, os espiritualistas, os poetas. Depois, com a globalização das informações, começamos a vivenciar não só nossas agruras domésticas , mas os infortúnios de todos desta terra. Em tempo real , nos espantamos com o 11 de Setembro e com a carnificina iraquiana. As relações tornaram-se muito mais distantes e como no Second Life , todos passaram a ter duas vidas: ora Vinicius, ora Yoñlu. Sequer conheço meu vizinho ao lado, mas converso com uma moça em Copenhague todo santo dia. A comunidade onde vivo e onde devo agir como ser político não é mais minha cidade , meu estado, meu país, mas várias outras do Orkut, do tipo : “Odeio defecar fora de casa”. Talvez, por isto mesmo, por tanta impessoalidade, tantos loucos nos Estados Unidos chacinam colegas e professores em escolas, como se estivessem participando de um Videogame , como o DOOM ou GTA. E , pelos mesmos motivos, tantos loucos incentivem e ajudem a destruição de tantos atormentados planeta afora. Neste espaço de sombras, a confiabilidade é mínima, as pessoas impalpáveis e, neste vale de sombras, falta o toque e o olho-no-olho. Terminamos todos solitários, agora em dois mundos : o virtual e o real, em ambos, perfeitamente descartáveis.
O suicídio de tantos jovens é uma espécie de enigma da esfinge dos nossos tempos. Precisamos, desesperadamente, descobrir como criar um mundo mais palatável para os Vinicius que virão. Talvez, assim, eles não precisem buscar as sombrias e nebulosas paragens pelas quais um dia trilhou um atormentado Yoñlu.

J. Flávio Vieira

2 comentários:

  1. Grande ensaio!
    A nossa situação de apatia generalizada é mais crônica do que o que achamos que é. Inclusive, J. Flávio, tenho observado esses reflexos até mesmo neste blog. Quantas e quantas vezes eu já flagrei dois, três ou mais dias de postagens sem nenhum comentário, inclusive da minha parte, navegando nestes momentos sem a menor vontade de comentar nada. Creio ter lido em Michel de Certou, em sua trilogia, "A Invenção do Cotidiano", algumas considerações sobre a morte lenta do imaginário popular no inconsciente coletivo. A grandiloqüência da matiz e o caráter linear do canône, na repetição inconteste do cotidiano mercantil globalizado, atuam diretamente no monocromatismo das relações afetivas, proporcionando fugas, onde na verdade o que predomina é a permanência da invalidez do devaneio. É incrível como inúmeros artistas, nos mais diversos segmentos, têm optado pelo minimalismo depressivo, para ilustrar ou perpetuar o culto ao automatismo. Nesses tempos de inglória cultural o dissenso tem sido travestido de ameaça, o que provoca o encapsulamento de ações e reações, bem como o semear da solidão depressiva.
    Grande abraço!

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  2. Obrigado pelo comentário pronto e conciso. Tempos conbturbados estes em que vivemos. Vc está certo que , de alguma maneira, os blogs são um reflexo disso. O monólogo em tomado ares de diálogo. A crítica mais ácida é sempre meçhor que o silêncio.
    Abraço

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