sábado, 1 de março de 2008

Brasília, essa desgraceira,por Roberto Pompeu de Toledo

Abaixo o ensaio semanal de um dos mais lidos jornalistas brasileiros

Não deve haver outro país em que a capital seja, ela própria, uma questão

Ao lançar o programa Territórios da Cidadania, o mais novo produto de sua superaquecida e superexigida oficina de marketing, o presidente Lula exortou os ministros a viajar pelo país, a seu ver a única maneira de "mapear e resolver" os problemas. "Ficar em Brasília é uma desgraceira só", disse. O historiador José Murilo de Carvalho, em artigo incluído num livro recente (Cultura das Transgressões no Brasil, editado pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial), escreve: "Brasília tornou-se uma corte corrupta e corruptora. Funcionasse o governo no Rio de Janeiro, mensaleiros e assemelhados seriam vaiados nas sessões e ‘ovacionados’ nas ruas". Partindo de premissas diferentes e com motivações diferentes, Lula e José Murilo acabam se encontrando na mesma esquina, ou melhor, na mesma falta de esquina: Brasília. Daqui a dois anos a capital federal estará completando meio século de vida. Meio século! – e até hoje não assentou a poeira da controvérsia que suscita.

Nos Estados Unidos também se fala de Washington. Não há eleição em que não concorra um candidato "contra Washington". O da vez é Barack Obama. Quando lhe perguntam por que, com apenas três anos de mandato de senador, já quer pular para a Presidência, ele responde que é melhor fazê-lo enquanto ainda é novo na capital do que quando ela já o tiver estragado. Mas a "Washington" de que se fala nos EUA é diferente da "Brasília" de que se fala por aqui. A "Washington" deles são os viciados costumes políticos. Nossa "Brasília" vai além: abrange também a localização geográfica e a concepção urbanística. Isso torna o nosso caso possivelmente único. Não deve haver no mundo país em que a capital, inclusive por seu aspecto físico, seja uma questão em si mesma. A combinação da localização, nas lonjuras do Planalto Central, com um plano urbanístico que privilegiou as autopistas, as distâncias e os espaços vazios teria resultado numa cidade tão boa para os conchavos e falcatruas dos detentores do poder quanto ruim para o convívio e a manifestação dos governados.

As razões de Lula e José Murilo são opostas. O que no fundo Lula vê em Brasília é um obstáculo à sua vocação de arengueiro e animador de auditório. Falta-lhe o principal, a platéia. O que José Murilo lamenta é a ausência de algo só parecido porque também tem a forma de seres humanos, mas não é uma simples platéia. Para Lula, falta um coadjuvante dócil ao teatro do poder. Para José Murilo, o déficit é de gente, de clima e de espaços que favoreçam o exercício de cidadania. Onde os dois se encontram é na crítica a Brasília, culpada de não satisfazer nem o político que ama o conforto das multidões, desde que domesticadas e melhor ainda se entusiasmadas, tampouco o historiador que reclama um povo nos calcanhares dos governantes.

A história de Brasília é cheia de paradoxos. Nascida, da prancheta de Lucio Costa, para ser a capital da igualdade, virou a mais desigual das cidades brasileiras. Era para acolher toda a população na uniformidade das superquadras, dos clubes e das corporações alocadas cada qual no seu nicho. Esqueceu dos pobres, no entanto, ou o país esqueceu de enriquecer, e virou a cidade proibida dos pobres expulsos para o submundo das cidades-satélites e favelas. Nascida, dos sonhos de Juscelino, como a capital de uma jovem democracia, acabou consolidada sob a ditadura, como a capital ideal para as decisões isoladas, a dispersão dos descontentamentos e o trânsito dos tanques. No Memorial JK que se ergue em Brasília, um diploma conferido pela Universidade de Coimbra chama o criador da cidade de "Iuscelinus, brasiliensis republicae sapientissimus princeps". Quem a consolidou foi "Emilius Médici, brasiliensis republicae notabilissimus tyrannus".

É provavelmente um engano pensar que, fosse a capital em outro lugar, as coisas seriam diferentes. Difícil imaginar que nestes tempos de domínio da televisão e de anestesia da política a população vá se dar ao trabalho de cercar os palácios ou assistir às sessões do Congresso. Os desatinos ocorrem também nas administrações locais do Rio de Janeiro e de São Paulo, e a cobrança aos governantes não é maior do que na capital federal. Mas Brasília leva a culpa. É a "ilha da fantasia". Em mais um dos paradoxos que perseguem a capital federal, Juscelino continua sendo o mais amado dos presidentes, herói até de minisséries na TV, mas sua principal obra é vilipendiada como se, ela própria, fosse uma das causas, para alguns até a principal, das infelicidades do país.

No plano simbólico – e este talvez seja o mais doído dos problemas –, Brasília teve a má sorte de encarnar uma utopia. Ela anunciava o futuro. Não por acaso, Juscelino, que era forte nessas coisas de futuro e de utopia, quis revesti-la de uma arquitetura futurista. Brasília era coisa jamais vista, em país algum, tanto na forma como no que representava. Era o anúncio de uma nova era. O futuro que ela anunciava chegou, e é isso aí.

Um comentário:

  1. O Niemeyer que deu errado
    Prédios projetados pelo arquiteto em Brasília precisam de adaptação para funcionar

    Por FERNANDA MENDES


    Obra: MUSEU NACIONAL DE BRASÍLIA
    Inaugurado em: 15 de dezembro de 2006
    Problemas: é escuro e fechado, não tem acervo nem chapelaria
    A obra do arquiteto Oscar Niemeyer é admirada em todo o mundo. Seus traços modelam a silhueta do Palácio do Itamaraty, em Brasília, exaltam as curvas da Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, e arrancam elogios no Exterior, como o Parque Aquático de Potsdam, na Alemanha. Um gênio? Sem dúvida. Mas os gênios também têm momentos ruins e com Niemeyer não é diferente. Ele costuma ser criticado por projetos pouco funcionais, inúteis e até de gosto duvidoso. A mais recente obra do arquiteto na capital federal – o museu e a biblioteca do Conjunto Cultural de Brasília, inaugurados há pouco mais de um ano – reúne todas essas características. “É uma desonra para um país como o Brasil e desconfortável para a arte”, disse o jornal The New York Times, referindo-se à falta de luz natural do museu que mais parece uma cuia. O diário nova-iorquino vai mais longe e diz que as obras de Niemeyer são “mal acabadas” e seus edifícios “descuidados”.

    As críticas ecoam por aqui. “A biblioteca e o museu são fabulosamente ruins. O museu parece mais uma colina de material de construção, tudo por dentro e por fora é malfeito. A biblioteca é caso de Procon”, diz Frederico Flósculo, professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília. “Oscar se esqueceu completamente do usuário. Esse museu serve mais para ser o memorial Niemeyer e mesmo assim só dá para entrar com ar-condicionado.” O museu não tem acervo nem função. Claro, a culpa por não expor obras pode ser creditada aos curadores. Mas o espaço é também criticado por ser escuro e fechado. A mostra mais importante até o momento foi a do próprio Niemeyer. “O museu é limitado a determinados tipos de exposições. É um grande salão”, diz o arquiteto Daniel Mangabeira. “Niemeyer pecou na funcionalidade e isso trouxe prejuízos ao público.”

    A Biblioteca Nacional é uma réplica dos edifícios do realismo soviético dos anos 50, presentes nos primeiros blocos de apartamentos de Brasília. Inaugurados em 1960, eles hoje sofrem grande desvalorização por questões estéticas. O prédio é todo guarnecido de vidros e fica virado para o poente, sob o sol escaldante de Brasília. Por isso, precisam ser revestidos de forma a proteger os livros. “Sem a película que impedirá que o sol atinja o acervo e os visitantes, fica difícil montar o espaço”, reclama o diretor da biblioteca, Antônio Miranda. Colocar o artefato custará em torno de R$ 160 mil. A previsão é que a biblioteca, inaugurada duas vezes, só comece a funcionar, de fato, daqui a três anos, diz Miranda. O Conjunto Cultural conseguiu ainda atrapalhar a vista da majestosa Esplanada dos Ministérios para quem chega pelo Eixo Monumental pelo Oeste.

    O Memorial dos Povos Indígenas é outra obra que ficou anos ociosa. Espécie de parafuso gigante que leva a uma oca, recebeu uma película roxa nos vidros para conter o calor. Aliás, este é um dos maiores problemas dos prédios de Niemeyer em Brasília. Recentemente, o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, sentiu o drama na pele. Ele resolveu celebrar a passagem de seu aniversário na Catedral, espécie de igreja-estufa nos dias mais quentes. Arruda foi sucumbindo aos poucos ao calor, tirou o blaser e arregaçou as mangas da camisa azul que, antes mesmo do ritual da comunhão, estava encharcada.

    Atrás de todos esses projetos está o escritório de Niemeyer em Brasília, que não passa por crises por ter a preferência para novas criações na capital, com preço 30% acima dos de mercado, segundo especialistas. Seus discípulos não gostam de discutir as obras do mestre que deram errado. “Esse debate é para sacanear o mago da arquitetura”, reclama Carlos Magalhães, sócio de Niemeyer.


    Obra: MEMORIAL DOS POVOS INDÍGENAS
    Inaugurado: em março de 1989
    Problemas: o espaço é inadequado para o acervo, o interior é escuro e uma película roxa reveste os vidros Obra: BIBLIOTECA NACIONAL DE BRASÍLIA
    Inaugurada em: 15 de dezembro de 2006
    Problemas: na prática, o local ainda não funciona. Está vazio e levará mais três anos para ter acervo porque o prédio é mal posicionado e precisa ter os vidros cobertos com uma película (com um custo de R$ 160 mil) para o sol não bater nos livros


    Assita o filme anexado a seguir: Marechal José Pessoa

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