domingo, 2 de março de 2008

A arte que não entedia

Num ensaio sobre a literatura de Guimarães Rosa, Benedito Nunes coloca em ordem crescente de valor as qualidades que Rosa perseguia no texto: o enredo, a linguagem, a poesia e a metafísica. É curioso que mesmo sendo um escritor pós-freudiano, ele não tenha se referido à psicologia. E há quem afirme que, depois de Freud, nenhum artista ficou imune à psicanálise.

Mario Benedetti, um uruguaio da geração de Júlio Cortazar e Carlos Fuentes, seria um deles. "Quem de nós", novela publicada em 1950 e só agora editada no Brasil pela Record, é uma longa sessão psicanalítica fora do divã, com poesia e linguagem bem cuidada, um enredo cortaziano surpreendente, em que não falta metafísica.

Dividida em três partes, a primeira delas é a sessão de Miguel. Sozinho em casa, depois que a esposa Alicia decidiu abandoná-lo e partir em busca de Lucas, um amigo que completa um triângulo amoroso de adolescência, ele senta-se e escreve. Apesar da escrita instigante, da crua avaliação que o personagem faz de si mesmo, imaginamos tratar-se de mais um livro em que vários personagens expressam os seus pontos de vista sobre um mesmo tema, no caso, o amor conjugal mal sucedido e a separação. Chegamos a lembrar o conto Num Bosque, do japonês Ryonosuke Akutagawa, em que uma mesma história é relatada de formas diversas, segundo a ótica de cada narrador. Miguel analisa a esposa, o amigo Lucas, os dois filhos, os pais, a amante e, principalmente, a si próprio.

O livro poderia ser um enfadonho consultório sentimental, se Mario Benedetti não fosse um perspicaz investigador das virtudes e dores do homem, sem o medo de vasculhar feridas, fazendo revelações surpreendentes e originais a cada página: No invejoso existe uma vontade, uma atitude de esforço ou, no pior dos casos, de capricho, que indiretamente o faz culto, laborioso, incansável. A inveja é o único vício que se alimenta de virtudes, que vive graças a elas.

O segundo personagem a se deitar no divã de Benedetti é Alicia, a esposa que toma a mesma decisão de Nora, a heroína de "Casa de Bonecas", de Ibsen: abandonar a casa, o marido e dois filhos. A diferença é que Nora deixa o mundo doméstico, onde viveu oito anos, para pensar em si mesma e tentar compreender as coisas. Alicia deixa a casa onde viveu onze anos, escreve uma carta e revela: Não posso mais, vou embora com Lucas. Sua busca possui endereço e destinatário.

O leitor imagina que tudo será previsível no terceiro capítulo, que por motivo óbvio se chama 'Lucas', e certamente terá as confissões do suposto amante, fechando a novela. Mas Benedetti é surpreendente e puxa o tapete sob os pés do leitor. Lucas é um jornalista que escreve contos e em vez de revelar-se em tom confessional, como Miguel e Alicia, prefere transformar o drama que vive num texto literário. Os personagens assumem nomes fictícios no conto de Lucas, narrado no corpo principal da página. Em notas de rodapé, o narrador Lucas explica como elaborou o conto, referindo os nomes reais dos personagens. São duas histórias se narrando dentro de uma mesma história, o que deixa o final da novela em aberto. Um quebra-cabeça ao estilo do que será desenvolvido por Cortazar no seu romance mais famoso, "O Jogo da Amarelinha".

Mario Benedetti nos diz que por mais real que pareça, tudo o que acabamos de ler não passa de uma invenção. É que a arte nunca deixa de ser uma mentira; quando é verdade, já não é arte e entedia, porque a realidade é apenas um irremediável e absurdo tédio.


Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens.

8 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Guimarães Rosa, em "Tutaméia, cita Tolstói:
    "Se descreves o mundo tal qual é, não haverá em tuas palavras senão muitas mentiras e nenhuma verdade."

    Em "Metafísica do Grande Sertão", Utéza transcreve o trecho de uma carta de Rosa ao seu tradutor italiano, onde ele diz:

    "Ora, você já notou, decerto, que como eu, os meus livros, em essência são 'antiintelectuais' - defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração, sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana (...).Por isto mesmo, como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los:
    a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto;
    b) enredo: 2 pontos;
    c) poesia: 3 pontos;
    d) valor metafísico-religioso: 4 pontos.

    O crítico alemão Gunther Lorenz insistia em ver nele descrições concretas e realistas. Sobre isso, Rosa disse:

    "Não, não, não... Eu gosto de apoio, o apoio é necessário para a transcendência. Mas quanto mais estou apoiando, quanto mais realista sou, você desconfie. Aí é que está o degrau para a ascensão, o trampolim para o salto. Aquilo é o texto pago para ter o direito de esconder uma porção de coisas... para quem não precisa de saber e não parecia... Você está entendendo?"

    Na minha humilde opinião, Guima ia além da psicologia e da psicanálise... creio que as levava em conta, sim (talvez estejam no ponto "b", o do enredo); mas tinha outras preocupações, que para ele pareciam mais profundas. E há mais coisas em Guimarães Rosa do que supõe nossa vã filosofia. rs

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  3. Beleza de comentário!
    Gostaria de acrescentar ao que já está acrescido em seu comentário, Amanda, a habilidade de Guima, como você chama carinhosamente, em utilizar os ritos de passagem para a transcendência dos seus personagens. Um verdadeiro mestre.
    Abraços!

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  4. Sim, bom lembrar! A Maria Zaira Turchi escreveu um artigo muito interessante em "Literatura e Antropologia do Imaginário" sobre o conto "Esses Lopes", do Tutaméia. Ela vê este conto como uma viagem iniciática, onde a personagem principal passa pelos arquétipos da jornada heróica, desde a inocência, o sofrimento e o abandono até a transformação em mártir e guerreira, para então voltar ao estado inicial de inocência. Todas essas fases são assinaladas pelas atitudes que representam grandes mudanças na vida dela. O conto "Páramo", de Estas Estórias, também é bem claro (se é que se pode dizer que algum texto do Guima é verdadeiramente claro), nesse sentido.

    Parece que o Rosa verdadeiramente soube ver o quanto "o mundo é mágico".

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  5. Um adendo: os créditos do meu comentário não são meus, mas do próprio Rosa, que suscita sempre infinitas indagações...

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  6. Mais um comentário...

    (sei que não deveria me deter ao Guima, mas não consigo evitar, é mais forte que eu)

    Eis o trecho que encontrei na entrevista concedida por Rosa a Gunther Lorenz:

    "Conheço bastante bem a literatura alemã. Por exemplo, o Simplizissimus é para mim muito importante. Amo Goethe, admiro e venero Thomas Mann, Robert Musil,
    Franz Kafka, a musicalidade de pensamento de Rilke, a importância monstruosa, espantosa de Freud. Todos estes autores me impressionaram e me influenciaram muito intensamente, sem dúvida"

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  7. Talvez esteja aí a chave para leitura de Grande Sertão: Veredas como uma "autobiografia irracional".

    Talvez esteja aí a chave para se entender misteriosa morte de Rosa, ocorrida três dias depois da posse na ABL, um evento adiado durante quatro anos...

    Talvez esteja aí a explicação para a enigmática declaração: "às vezes eu, Rosa, penso que sou um conto escrito por mim mesmo"...

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  8. Marcelo! Até aqui, Brutus? Que surpresa. Tentando mais uma vez alfinetar (ou apunhalar?) o Rosa... sentiu falta das discussões nas comunidades, foi? Use a peneira, moço. A peneira.

    E, afinal, quem não escreve o conto da própria vida?

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