terça-feira, 8 de abril de 2008

As madrastas e os pais ainda apavoram?

O imaginário das pessoas já foi povoado de madrastas cruéis, pais omissos e incestuosos e filhas abandonadas. Histórias tradicionais, narradas desde que a humanidade aprendeu o manejo das palavras, formam um repertório filosófico e regulador de comportamentos. Um indivíduo normal seria aquele capaz de contar a sua própria história, subtraindo-se do mar de histórias coletivas que ficaram como nosso legado.

Entre os contos que ouvi na infância, o da menina enterrada viva pela madrasta ainda me comove e apavora. Um homem ficou viúvo com uma filha pequena. A vizinha tanto fez para agradar a criança que ela terminou implorando ao pai que casasse com a bondosa mulher. Desconfiado, o pai advertia a filha: Agora ela te dá mel; mais tarde te dará fel. Mas a menina implorou tanto que o homem aceitou o casamento.

O pai fazia viagens e deixava a menina entregue à madrasta, que logo botou as unhas de fora. Atrás da casa havia uma figueira, e ela obrigava a menina a tanger os passarinhos, para não picarem os frutos. Se um único figo aparecesse estragado, sobrevinha um castigo terrível. Até que um dia a madrasta resolveu desfazer-se da menina e enterrou-a num buraco. No lugar cresceu um enorme capinzal e quando o jardineiro cortava o capim, escutava uma voz cantando:

Jardineiro do meu pai
não me corte o cabelo
minha mãe me penteava
minha madrasta me enterrou
pelo figo da figueira
que o passarinho bicou.
Xô passarinho da figueira de meu pai!

Numa das raras vezes em que o pai se encontrava em casa e deu pela falta da filha, o jardineiro pediu que ele escutasse a estranha voz. Cavaram a terra e encontraram a menina muito fraquinha, mas ainda viva. O homem puniu a esposa cruel enterrando-a no buraco onde ela jogara sua filha.

Há muito tempo esquecidos das madrastas de Branca de Neve, Gata Borralheira e do relato acima, os brasileiros se comoveram com a história real da menina Isabella. Nesse conto moderno em que o desfecho é a morte, o pai também é suspeito de assassinato. Ele deixa o papel clássico de omisso, sedutor ou incestuoso pelo de assassino, um papel também presente nas histórias tradicionais e na mitologia.

Existem muitos arranjos de parentesco nas famílias modernas, por conta do número alto de casamentos e separações. No caso de Isabella, o pai e a mãe mantiveram um namoro de três anos, que se desfez antes que ela nascesse. Com o casamento do pai com outra mulher, ela ganhou uma madrasta e dois irmãos. De quinze em quinze dias passava um final de semana com eles. A mãe verdadeira possuía um namorado, que se tornaria o padrasto de Isabella, caso viessem a casar. Provavelmente eles lhe dariam mais irmãos. Isabella talvez se sentisse abandonada e à deriva nessa ordem familiar. São fantasias de um narrador, como nos contos de fadas.

Embora o pai e a madrasta suspeitos tenham escrito cartas de próprio punho, cheias de declarações de amor à menina, as frases soam maquinais, estereotipadas, sem a tonalidade dos verdadeiros sentimentos. Isso não indica que os suspeitos sejam autores do crime, é uma mera observação do sentimento das cartas. Talvez a mãe de Isabella, com pouco mais de vinte anos, esteja polarizada pelo seu novo amor. Isso também não indica que ela negligenciou a filha, apenas que Isabella precisava administrar a convivência com as duas famílias: um pai e uma mãe verdadeiros e um pai e uma mãe fictícios, o que é bastante complexo para uma criança.

O que essas considerações têm a ver com a história da menina encontrada morrendo no jardim de um prédio de apartamentos, suspeita de ter caído ou ter sido arremessada? Tem a ver com a imaginação das pessoas, não muito diferente de há milhares de anos atrás, quando se criavam as mesmas histórias de abandono, crueldade, vingança e morte. Vez por outra uma mãe joga um filho num depósito de lixo, num córrego ou lagoa. A imprensa faz reportagens, todos se comovem. O mistério que envolve o caso de Isabella, a possibilidade de um crime perverso com a participação ativa ou passiva de madrasta e pai mexe com o nosso inconsciente arcaico, aquele onde se armazenaram contos terríveis como o da menina enterrada viva pela madrasta.

Até parece que a função das histórias antigas não foi alcançada. A reflexão sobre esses contos nos tornaria melhores, menos capazes de repetir crimes e horrores.


Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens.

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