terça-feira, 8 de abril de 2008

Secos & Molhados


Chico Luiz chegara recentemente para uma breve estada em Matozinho. Representante comercial da Fernandes & Fernandes - Secos & Molhados viera da capital como mascate , trazendo consigo aquelas quinquilharias de sempre. A sopa varara todo o estado por quase dois dias até chegar em Matozinho, despejando um Chico mais moído que milho de canjica. Hospedado na famosa Pensão Tupinambá, nosso comerciante extasiou-se, rapidamente, com o provincialismo da cidade. Solteirão , entrado nos quarenta, vivia maldizendo a correria da capital, onde com tanta velocidade para tudo, não se tinha tempo de parar para viver. Depois, carregava consigo, vários traumas tão comuns em cidade grande : fora assaltado por duas vezes e quase perdera a vida num acidente de trânsito quando se deslocava para uma cidade vizinha e cochilara no volante. Não dera ainda cabo da primeira semana na vila, Luiz já tomara a decisão. Pensava em mudar-se, definitivamente, fixando-se em Matozinho e em continuar exercendo suas funções de representação naquelas paragens. Iria à capital apenas esporadicamente para resolver algumas pendências e visitar familiares e amigos. Enviou, inclusive uma cartinha para a firma, contando dos seus propósitos. Imaginou que a idéia teria ótima guarida por lá, uma vez que há já muitos anos seus patrões buscavam sediar alguém naquela distante área, com experiência e mobilidade suficientes para tocar os interesses comerciais da empresa.
Os dias se foram passando e Chico Luiz cada vez mais se foi convencendo que tomara a decisão mais acertada para sua vida. Dormia quase de porta sem tranca, perambulava pelas ruas vazias da cidade, altas horas da noite. Todo mundo já o conhecia e podia capotar bêbado em qualquer viela que certamente alguém o levaria nos braços para a Pensão Tupinambá. A proximidade com os comerciantes da região também, aumentaria significativamente as vendas e facilitava, por outro lado, as cobranças. Só havia , basicamente, um probleminha, Matozinho era pequena e todo mundo se sentia como da mesma família. A solidariedade vinha com um precinho: todo vivente se punha no direito de se meter na vida do outro. A fofoca imperava. Qualquer descuido e a história ganhava a rua e se espraiava como epidemia, aumentando pouco a pouco à medida que saltava de língua em língua.
Já com mais de um mês na vila, Chico já se considerava da terra. Aguardava, apenas, a confirmação da firma. Um dia soube de um júri que iria haver naquelas plagas. Coisa rara por ali. Numa briga de bar, anos atrás, Cacildo Piojota havia matado Nenzim do Fó com uma paulada na moleira. Júri no interior é uma dessas raras diversões e junta gente como em Festa de Padroeira. Luiz resolveu aproveitar o entretenimento gratuito. Entrou na Sala da Câmara de Vereadores, improvisada de fórum, e abancou-se com dificuldade. Já havia gente dependurada por todo canto, esperando o desenrolar do julgamento. No Centro , Dr. Hermenegildo Bembém, o juiz togado de Matozinho, iniciou os trabalhos. Deu a palavra ao promotor Dr. Ribinha que pinicou o tabuleiro de Piojota por mais de duas horas. Segundo ele crime frio, calculado, hediondo. Dr. Zílio Castanheira, por sua vez, arregimentou uma difícil tese de legítima defesa, afirmando, categoricamente que Nenzim já o vinha ameaçando o réu de morte há muitos anos. O momento crucial do julgamento estabeleceu-se quando Dr. Hermenegildo resolveu ouvir o réu Cacildo:
--- Seu Piojota, me explique aí como tudo aconteceu.
Cacildo levantou lentamente seus quase dois metros de altura e contou sua versão:
---- Seu juiz, nós tava bebendo umas mendraca, os dois já mais melado que balcão de correio, quando ,num sei porque, começou um bate-boca. Ele, brabo, me deu umas tapas, aí eu, dei uma cipoadinha de nada nele e, até hoje num sei, como diacho foi que aquele fracote ensebou o capim...
---- Cipoadinha, seu Piojota, que cipoadinha ? O senhor pipocou a cabeça do seu Nenzim que nem a viúva reconheceu o corpo . Com que foi mesmo essa cipoada ?
Neste momento, um Chico Luiz atônito ouviu da platéia aquela declaração de Cacildo que quase o derruba da cadeira :
--- Ora , seu juiz, a cipoadinha que dei nele foi cum pau de porteira...
Rápido, Luiz imaginou aquele pau de porteira que pouco a pouco de tanto entrar e sair do buraco da cancela ia ficando brilhante, como aço inoxidável e se tornando uma arma mais perigosa que uma borduna ou um taco de beisebol.
Chico voltou capiongo para a Pensão Tupinambá e lá encontrou, por coincidência, a resposta afirmativa da sua empresa quanto à sua nova residência. Cabisbaixo, pegou a caneta e enviou um pequeno bilhete para a Fernandes & Fernandes -Secos & Molhados :
--- Desisti de tudo. Em lugar que pau de porteira de baraúna é considerado chicote , eu não moro. Será que não tem algum vaga para Bagdá ou para Faixa de Gaza ?

J. Flávio Vieira

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