quarta-feira, 16 de abril de 2008

HAITI


Em 1995, em missão oficial do governo brasileiro fui ao Haiti em companhia de um outro colega chamado Claudio do Amaral Júnior. Este trabalhou nos últimos países a erradicarem a varíola: Índia e Etiópia. Chegou a ser sequestrado por uma guerrilha da Somália, dentro do contexto da guerra fria: era uma guerrilha financiada pelo EUA, enquanto o governo da Etiópia era pró-soviético. A idéia da guerrilha era criar um constrangimento internacional ao sequestrar um funcionário da Organização Mundial de Saúde. Então na viagem ao Haiti, fizemos conexão em Miami, com aquela beleza litorânea, as edificações do consumismo desenfreado, ao mesmo tempo que seminal na Miami Art Noveau (ou Art Deco). Quando descemos no Aeroporto de Port Au Prince, um calor nordestino, o terceiro mundo, a baía e a imensa montanha sobre a qual sobe a cidade. Na metade da sua elevação o embaixador brasileiro nos deixou num hotel, fizemos os registro de praxe e fui para o meu quarto. Espaçoso, com móveis em madeira de lei. Deixei a bagagem num estrado e fui abrir a janela. O hotel era baixo, estava no segundo andar, mas as ruas em volta subiam até mais alto do que me encontrava. Nesta altura há milhares de quilômetros do Brasil e com trinta anos que deixara minha cidade natal. Carregava um laptop e o ímpeto foi deitar os dígitos sobre o teclado com o que segue:

Chegando e vendo Port au Prince,
A
baía, sua planície e as serras ao redor.

Sentindo seu calor nordestino,
Qual emblema retirado do Piauí.

Vendo as ruas esburacadas,
O
trânsito sem regras e códigos,

Os vendedores no meio da rua,
Nas
faixas quase calçadas,

O intenso movimento de gente,
Carros japoneses e americanos.

É domingo.
Sinto
sua gente.

Uma grande identidade me invade.
Recordo a
velha Soledade,
Vó, Raimunda Jacó, Chico
Preto,
Dona Maria, Azarias, Amaro Bento.

De dentro de mim emana o cheiro da raça,
Seu forte odor que na aurora foi africano,
Sintetizou-se nesta
imensa mandala,
Da
minha alma e corpo mestiços.

Da sacada andei por caminhos
De
um passado inconcluso.
Caminhos tortuosos,
Que sobem e descem ladeiras,

Com suas crianças alegres,
Rebolando
pedras à distância,
Soltando
risadas,

Falando alto.

Caminhos por onde circulam mulheres,
Com um vasilhame de água na cabeça.
Lata d’água na cabeça vai...”

Venha ver Memé,
Parece os
caminhos passado
Na
vastidão da Batateira.

Aqueles caminhos com cheiro de barro,
E o
nosso povo,

Que pensávamos tão local,
Hoje se multiplica universal,
Neste
vasto mundo.

Num matagal próximo corre um frango,
Em busca do que comer.

As pessoas passam,
Com as roupas domingueiras,
As meninas de
laços na cabeça,
Adultos de camisas com mangas compridas.

Ouço vozes,
Falas de crianças brincando,

Adultos se comunicando,
A
alegria que os homens guardam,
Somente para quando se transformam em deuses.

Que alegria Tereza!
Ouvi a
linguagem universal do homem.

Tão profunda no passado como o Sânscrito indo-europeu,
O Iorubá da
costa da mina
E o
Tupi-guarani das praias brasileiras.

Tão ampla de compreensão,
Que nem a mais vã das tentativas,
De uma
língua mundial,
Conseguiu.

Ouvi a língua que não se chamava Francês,
Créole
ou Patuá.
Era a fala da minha própria existência

E dos pedaços que dela vieram,
De
um tempo que nunca vivi
E daqueles
que, certamente,
Nunca viverei.

A lua crescente,
Tão lua,
Mutante como as luas do tempo e do espaço.

As cigarras,
Nos galhos das árvores,
Cantam
aqui como .

Os passarinhos voam,
Para o abrigo noturno,

Passa um casal de psitacídeos,
Tão periquitos,
Que faltava a caatinga cearense,
Para virar pleonasmo.

Um galo canta,
Melodia triste,
Com as notas do entardecer,

Vozes fraternais,
Um angelus eterno.

Da sacada, por sobre flamboyants,
Seguindo
pela encosta da serra,
Os
quintais de mangueirais e coqueirais.

Um quintal de casa,
Com pessoas sentadas,
Cadeiras enfileiradas
e o
passo rápido de um cachorro,
No
terreno íngreme.

Tudo tão humano,
Tudo tão distante,
Tudo igual.

Na rua continua o movimento dominical.

Sentado num muro à beira rua,
Um grupo de jovens conversa animadamente.
Um deles em mostra,
Um brinquedo de mão para os passantes,

Três descem a ladeira,
Sentados numa
motocicleta pequena,
Na
banguela para economizar gasolina.

Subindo a serra,
Por sobre o vale,
O
calor,
A
poluição

E a pobreza,

A alta burguesia habita,
Em mansões mediterrâneas.
Longe do mar,

Mais próximo das nuvens,
Longe da vida intensa da cidade,
Mais perto da calmaria,
De uma
vida confortável.

Ali habitam o pragmatismo,
A
opção mais correta de vida individual,
Tão puxada para o que se tem de mais,
Completo da civilização do consumo,

Que se encerra em si mesma.

Haiti,

Como disse o cantor,
É
aqui.

Haiti,
Como tantas vezes repetiram,
Todas as
vezes que anunciava a viagem,

É aqui.

É ali,

Mais adiante,

Muito além,

Em mim,

Em ti,

Em nós.

Do Claudio Amaral ao ler o que estava acima: “Fui ver as pinturas da casa da Fifi que mais parecia com os peitos de fora de uma puta do mangue - Rio - Os quadros refletiam a vida do haitiano. Mercados, feiras, mata, flores, animais, cultura de algodão. arroz; enfim tudo o que era do Haiti . Aquilo tudo me parecia Bangladesh, Dacca principalmente com beggars, riquixás, berros, sons, um calor e a umidade de Calcutá. Lembrei-me da sede e dos banhos sem parar na rua com a umidade. Dor de cabeça. falta de sal. vomito. vaca na rua. sagrada e g.....”


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