domingo, 22 de junho de 2008

UM VENTO COM SAUDADE DO PÉ DA SERRA DO CRATO

"Eu sou...sou...eu sou um matuto...sou um matuto do da serra do Crato". E num ritmo discursivo, com pausas centenárias, completou sua homenagem concentrada, composta por três períodos apenas: "Ela foi quem me ensinou. O vento que circula no da serra do Crato é um vento com saudade do mar". Em seguida com a voz tolhida pelo choro retornou ao assento em que se encontrava. Alemberg, com a cabeça baixa e suas lágrimas formando um pequeno lago sobre as lentes dos óculos. Era uma saudade que não dispersava, sobretudo recolhia volume.

Na porta da pequena capela do Memorial do Carmo, o Rio de Janeiro era contemporâneo como o é. Por trás um grande vai e vem de policiais militares, helicópteros sobrevoando a área, a Avenida Brasil caudalosa, contraditória entre um Mercedes Benz conversível e as favelas de suas laterais. Na porta, enquanto esperávamos, o professor Cândido Mendes se espantava: eu não tinha consciência do quanto Violeta era conhecida no Rio de Janeiro. Cândido era um amigo da militância da juventude universitária católica dos idos dos anos cinqüenta de Maria Violeta Arraes de Alencar Gervaiseau.

Um destaque para Bia Lessa. Desde os momentos críticos do CTI como uma mini deusa, sabendo que poderes não tinha para mudar o curso mortal, mas querendo para a amiga um final de dignidade. E que dignidade era essa? A humanidade de Violeta. Naqueles dias mesmo a pequenina, miudinha, quase nada, Bia tinha dado um valor estético inusitado para a campanha da moda no Fashion Rio. Mas no dia seguinte ela dizia: com um país feito o nosso aquilo não é nada. Era Bia e você esteve na altura de quem a conhece, de quem vai muito longe, pois sabe que o horizonte que esconde não é fim em si, é apenas a curvatura do cosmo.

Entre os depoimentos, ouviram-se os dos filhos. São depoimentos, em quaisquer circunstâncias, muito especiais. Lendo texto de São Francisco de Assis, Eça de Queiroz pela voz de um deles ou o mais jovem reconhecendo que o abandono que a militância da mãe lhe parecera era apenas o processo do encontro dele mesmo com a humanidade. Maria Benigna, Henri e Jean Paul, ao lado de um sofrido Pierre Gervaiseau. Pierre é um europeu muito disciplinado, sabe bem das dificuldades terceiro mundistas, mas por vezes quer uma resposta mais direta deste povo, quem o conhece pode imaginá-lo irritado naqueles embates. Não é bem assim e neste momento tem uma grandeza de compreensão e paciência própria de quem as possui.

Quando a família abriu os depoimentos aos amigos, Turíbio Santos trouxe o depoimento pela interpretação de Villa Lobos. Uma arte apropriada àquela brasileira que pertence a um povo que tantos violonistas teve e entre eles este que tem nome ruidoso, inquieto mesmo. Mas este nome grego, Turíbio, recebeu a bênção de um candomblé sincrético, aquele de todos os Santos.

Almino, um intelectual de peso, escritor sólido, com a difícil missão de conduzir a Casa Ruy Barbosa do Ministério da Cultura, enfim uma pessoa importante. Sai do seu assento em que se encontrava e andou como um humílimo camponês. Posou com a leveza de uma ave sertaneja e do galho em que estava, extraiu a síntese da relação com a tia, repetindo a oração do anjo da guarda, verso a verso, enquanto o professor Cândido Mendes lhe fazia eco. Nisso veio pela capela, como se fazia naqueles terreiros de cantadores, um homem e seu violão. Sentou-se num banco que às pressas lhe deram e tocou uma linda canção, música de seu filho e letra dele, que falava do sertão, do nordeste, destas eternidades que entram como categoria do todo. Caetano Velloso ainda retornou e repetiu, ao final da cerimônia e abriu a voz com: no meu cariri quando a chuva não vem/ Não fica ninguém somente Deus ajuda/ Se não vier do céu/ Chuva que nos acuda/ Macambira morre, Xique-xique seca, Juriti se muda. ...E em seguida Caetano cantou: apenas a matéria vida era tão fina.

A política nacional, da qual Violeta é matéria, não esteve como mera presença. Apenas oportunidade de mostrar-se. O governo de São Paulo deslocou membros seus, entre aqueles de maior expressão nacional, mas todos com um vínculo pessoal com Violeta: Aloísio Nunes Ferreira e Alberto Goldman. Carlos Augusto e Guel Arraes com suas esposas desde sempre ao lado da tia, estiveram como lembrança do grande amor que ela lhes tinha, sei que sabem, mas fica mais evidente quando dito por um terceiro que sozinho com ela tomou conhecimento de tal. Cacá Digues trouxe duas faces, aquela do nordestino universal igual Violeta e a outra de Nara que se tornou uma espécie de anjo sublime dos dias após em que Violeta ficou sem a amiga. E tantas pessoas fortes do universo estelar de Violeta entre elas, nestas falhas memórias, a Maria Elisa e a Cristina. E o Amir Haddad que entrou silencioso, como um personagem do seu teatro de rua, quase sem falar com ninguém, veio até a amiga, a fixou por algum tempo e, terminada a cerimônia, foi-se.

O texto central da cerimônia foi a narrativa do contexto histórico de Violeta na visão do professor de filosofia, diretor do museu de arte moderna, ex-dominicano, humanista e pensador Blanquart. Um ser como a humanidade de vez em quando extrai de seu movimento. Um francês que filosofa com o corpo, aliás isso é bem francês, poderia ser de quem da filosofia extraiu uma imensa revolução social, política e econômica e desta resulta o seu modo de capturar a vida nos séculos XIX e XX. Lendo em francês enquanto Cândido Mendes relia em português, aquele texto deveria retornar para o nosso silêncio reflexivo quando os fatos podem se alongar mais do que momentos.

Para completar Violeta o padre que realizava a cerimônia. Era um homem vindo dos sertões de Pernambuco, largado na periferia do Rio de Janeiro, junto ao ministério de capelas esquecidas. Recebeu a incumbência do ofício assim como uma rotina de sua vida. Por todo o tempo em que oficiava sua rotina se mantinha. Mas a partir de um certo momento, parece ter reconhecido Cândido Mendes, Alberto Goldman e Caetano Velloso e como ele mesmo humildemente repetiu: a ficha lhe tinha caído. Oficiava uma cerimônia para alguém muito importante.

Mas de todas as importâncias que pude extrair, uma que todos sentimos, mas talvez algumas pessoas do Crato não saibam. O quanto Violeta levou o nome desta cidade para a cultura brasileira. Talvez na cidade "tenha caído a ficha" do quê ela representou para si. E falo deste "" por saber que não é incomum que pessoas se alienem da sua própria realidade, cultivando um individualismo utilitarista que as reduz ao invés de ampliá-las.


3 comentários:

  1. Eu conheci pouco a Violeta. As minhas lembranças se remontam a minha infância quando visitava Dona Benigna , madrinha de minha mãe,e ela me falava da filha Violeta que morava em Paris e gostava de arte e dos artistas. Dona Benigna me ouvia pelo rádio nos Festivais da Canção e me identificava como um artista.
    O tempo passou. Dra. Violeta agora era Secretária de Cultura do Estado e eu estava em Fortaleza com o show "Soy Loco por Ti América Latina" e a convidei para o show. Por motivos outros não assistiu ao show, mas se justificou quando a encontrei e que muitos tinham visto e gostado. Mais na frente, foi a minha vizinha aqui no Crato, quando era a reitora da Urca e houve uma chance maior de conversas agradáveis e entusiasmadas sobre cultura e arte no Cariri e, mais tarde, quando estreei o show "Contemporâneo" lá em Nova Olinda inclui "Je ne regrette rien" especialmente para homenageá-la..
    Nos últimos quatro anos, quando fui ao Rio de Janeiro e ela já enfrentava com grande coragem a doença que a vitimou, comemos castanha e chá na copa do seu apartamento, passeamos algumas veses no morro da Urca, almoçamos juntos, fomos ao Teatro Municipal e assistimos missa no Mosteiro de São Bento. Foram nestes últimos anos, num ambiente de simplicidade, que conheci realmente a grande mulher VIOLETA e aprendi a admirá-la.
    Que descanse em Paz.

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  2. (CORRETO)

    Eu conheci pouco a Violeta. As minhas lembranças se remontam a minha infância quando visitava Dona Benigna , madrinha de minha mãe,e ela me falava da filha Violeta que morava em Paris e gostava de arte e dos artistas. Dona Benigna me ouvia pelo rádio nos Festivais da Canção e me identificava como um artista.
    O tempo passou. Dra. Violeta agora era Secretária de Cultura do Estado e eu estava em Fortaleza com o show "Soy Loco por Ti América Latina" e a convidei para o show. Por motivos outros não assistiu ao show, mas se justificou quando a encontrei e que muitos tinham visto e gostado. Mais na frente, foi a minha vizinha aqui no Crato, quando era a reitora da Urca e houve uma chance maior de conversas agradáveis e entusiasmadas sobre cultura e arte no Cariri e, mais tarde, quando estreei o show "Contemporâneo" lá em Nova Olinda inclui "Je ne regrette rien" especialmente para homenageá-la..
    Nos últimos quatro anos, quando fui ao Rio de Janeiro e ela já enfrentava com grande coragem a doença que a vitimou, comemos castanha e bebemos chá na copa do seu apartamento, me mostrava as flores azuis do jardim projetado por Burle Max e passeamos algumas vezes no morro da Urca, almoçamos juntos, fomos ao Teatro Municipal e assistimos missa no Mosteiro de São Bento. Foram nestes últimos anos, num ambiente de simplicidade, que conheci realmente a grande mulher VIOLETA e aprendi a admirá-la.
    Que descanse em Paz.

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