terça-feira, 22 de julho de 2008

FOLHA DE SÃO PAULO, EM 8 DE MAIO DE 2002




SUBSTITUIÇÃO NO STF

Degradação do Judiciário

DALMO DE ABREU DALLARI

Nenhum Estado moderno pode ser considerado democrático e civilizado se não tiver um Poder Judiciário independente e imparcial, que tome por parâmetro máximo a Constituição e que tenha condições efetivas para impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando, desse modo, os direitos
consagrados nos dispositivos constitucionais. Sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituiçõese ncarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do
mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais distanciado da
ética. Essas considerações, que apenas reproduzem e sintetizam o que tem
sido
afirmado e reafirmado por todos os teóricos do Estado democrático de
Direito, são necessárias e oportunas em face da notícia de que o
presidente da República, com afoiteza e imprudência muito estranhas, encaminhou
ao Senado uma indicação para membro do Supremo Tribunal Federal, que pode
ser considerada verdadeira declaração de guerra do Poder Executivo federal
ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos Advogados do
Brasil e a toda a comunidade jurídica.
Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero
em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil,
o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional. Por isso
é necessário chamar a atenção para alguns fatos graves, a fim de que o
povo e a imprensa fiquem vigilantes e exijam das autoridades o cumprimento
rigoroso e honesto de suas atribuições constitucionais, com a firmeza e
transparência indispensáveis num sistema democrático.
Segundo vem sendo divulgado por vários órgãos da imprensa, estaria
sendo montada uma grande operação para anular o Supremo Tribunal Federal,
tornando-o completamente submisso ao atual chefe do Executivo, mesmo
depois do término de seu mandato. Um sinal dessa investida seria a
indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral da União, Gilmar Mendes, alto
funcionário subordinado ao presidente da República, para a próxima
vaga na Suprema Corte. Além da estranha afoiteza do presidente -pois a
indicação foi noticiada antes que se formalizasse a abertura da vaga-, o nome indicado
está longe de preencher os requisitos necessários para que alguém
seja membro da mais alta corte do país.
É oportuno lembrar que o STF dá a última palavra sobre a
constitucionalidade das leis e dos atos das autoridades públicas e terá papel fundamental
na promoção da responsabilidade do presidente da República pela prática
de ilegalidades e corrupção.
É importante assinalar que aquele alto funcionário do Executivo
especializou-se em "inventar" soluções jurídicas no interesse do
governo. Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que nunca se
notabilizou pelo respeito ao direito. Já no governo Fernando Henrique,
o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público da União,
aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na tentativa
de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade, duas
vezes negada pelo STF, "inventaram" uma tese jurídica, que serviu de
base para um decreto do presidente Fernando Henrique revogando o decreto em
que se baseavam as demarcações. Mais recentemente, o advogado-geral da
União, derrotado no Judiciário em outro caso, recomendou aos órgãos da
administração que não cumprissem decisões judiciais.
Medidas desse tipo, propostas e adotadas por sugestão do
advogado-geral da União, muitas vezes eram claramente inconstitucionais e deram
fundamento para a concessão de liminares e decisões de juízes e tribunais,
contra atosde autoridades federais. Indignado com essas derrotas judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros pronunciamentos pela imprensa, agredindo grosseiramente juízes e
tribunais, o que culminou com sua afirmação textual de que o sistema judiciário
brasileiro é um "manicômio judiciário".
Obviamente isso ofendeu gravemente a todos os juízes brasileiros
ciosos de sua dignidade, o que ficou claramente expresso em artigo publicado no
"Informe", veículo de divulgação do Tribunal Regional Federal da 1ª
Região (edição 107, dezembro de 2001). Num texto sereno e objetivo,
significativamente intitulado "Manicômio Judiciário" e assinado pelo
presidente daquele tribunal, observa-se que "não são decisões
injustas que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do advogado-geral
da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo".
E não faltaram injúrias aos advogados, pois, na opinião do dr.
Gilmar Mendes, toda liminar concedida contra ato do governo federal é produto
de conluio corrupto entre advogados e juízes, sócios na "indústria de
liminares".A par desse desrespeito pelas instituições jurídicas, existe mais um
problema ético. Revelou a revista "Época" (22/4/ 02, pág. 40) que a
chefia da Advocacia Geral da União, isso é, o dr. Gilmar Mendes, pagou R$
32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público -do qual o mesmo dr. Gilmar
Mendes é um dos proprietários- para que seus subordinados lá fizessem
cursos. Isso é contrário à ética e à probidade administrativa, estando muito
longe de se enquadrar na "reputação ilibada", exigida pelo artigo 101 da
Constituição, para que alguém integre o Supremo.
A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir
calada e submissa à consumação dessa escolha notoriamente inadequada,
contribuindo, com sua omissão, para que a arguição pública do candidato pelo
Senado, prevista no artigo 52 da Constituição, seja apenas uma simulação ou
"ação entre amigos". É assim que se degradam as instituições e se corrompem
os fundamentos da ordem constitucional democrática.

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Dalmo de Abreu Dallari, 70, advogado, é professor da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário de Negócios do município de São Paulo

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