sexta-feira, 19 de setembro de 2008


Agenor acordou com uma voz estranha em seu ouvido. Achava que era uma voz de criança. Ou de velha, perto de morrer? Pensou que ainda estava dormindo. Não. Estava acordado. A televisão estava ligada. Um pastor com sorriso número trinta abençoava os fodidos da segunda feira. O jornal entrou pela fresta da porta. O escroto do garoto não se preocupava se aquela merda entrava amassado. O menino tinha pressa. A cidade tem pressa sempre. Agenor levantou devagar. Um barulho irritante vinha do banheiro. A pia. Ligada a noite inteira. Que merda. Bateu um remorso, mas depois passou. Lembrou do aqüífero guarani. Ainda ia ter muita água pros fodidos do país depois que ele se fosse. Decidiu não desligar a torneira. Nunca mais. E que se fodessem para todo o sempre os ecologistas de plantão. Pena não ter um gato pra chutar. Pensou em tomar banho. Depois desistiu. Pra quê? Não ia tomar banho. Nem sedativos. Nem fazer a barba. Abriu a porta pra varandinha ridícula de seu apartamento. Olhou a rua. O esgoto continuava estourado. A filha de dona Guiomar estava chegando. Ia tomar umas porradas. Decidiu ver o show. O tapa fez Cidinha cair. Dona Guiomar tem a mão pesada. Cidinha sempre apanha na segunda feira. Acho que acostumou. O chute pegou na boca. Vão separar. – deixa a vadia apanhar! Eles nunca deixam. Olhou de relance o jornal. Nada de novo. Os mesmos roubos. As mesmas mentiras. A mesma desesperança. E o gado segue manso. Cada um pro seu curral. – vai trabalhar não Agenor? Essa moleza vai acabar! Decidiu que não tinha escutado. Decidiu que não era Agenor. Decidiu que era um presidente exilado de uma ilha distante e sem nome. Decidiu que sempre tinha sido um preso político em prisão domiciliar. Decidiu que era um filho da puta abandonado em uma unidade de menores infratores. Lembrou de um menino. Ele? Um personagem de um livro? Filme? Ele? Ele. Com uma baladeira na mão. Uma lagartixa sem cabeça estremecendo na parede. Trocou de roupa. Botou uma bermuda larga. Uma camiseta branca. Procurou. Amassou a antena interna da televisão. Fez um V. amarrou pedaços de elástico. Improvisou uma baladeira. Disse, pra ninguém: - vou sair. Não me espere. Vou caçar lagartixas.

2 comentários:

  1. Lupeu de baladeira em punho, antes da pedra na cabeça da lagartixa, com seu olhar de caçador vasculhou a periferia de nossas vidas suburbanas. Mas fiquei com uma grande inveja de não seer o autor daquela cena a partir do chamamento do Agenor ao trabalho. Enquanto escrevo estou rindo, é humano demais para que não troquemos rapidamente de ares através dos abalos torácicos do riso. O Lupeu ou o Aldir Blanc estão ficando cada vez mais parecidos.

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  2. grande mestre
    valeu pelo riso
    (e pela comparação)
    um grande e apertado abraço.

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