quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Parêntese - Marta Feitosa




"Parêntese" era o nome de uma cachaça produzida no vilarejo de Esperança Vã, nos arredores de Paulo Afonso-BA. No lugar, não se valorizava o produto da terra até a chegada de um sacerdote húngaro que viera substituir o antigo pároco, este transferido após dar um vexame em público, na praça, bêbado, declarando-se à D. Nevinha, senhora casada bastante conhecida na vila que tomava um refresco com uma amiga. Ao fato, um alarde, quantos acorreram para ouvir as palavras das mais sofisticadas já pronunciadas em Esperança Vã. Seu marido paciente como uma mariposa na folha, limitou-se à omissão até porque gostava muito do pároco que considerava uma figura de caráter altruísta e era, e, como do amor ninguém escapa, lamentava por ele, mesmo sendo a vítima do escândalo a sua própria esposa. Também era um homem altruísta. O sacerdote húngaro, investigador de milagres às ocultas, tendo levantado antes de todos na vila, seguiu para o alambique impressionado com a estória ouvida no dia anterior. Sorrateiramente experimentou um gole do que já estava destilado e subitamente foi sentindo fogo subir-lhe pelo corpo inteiro. Às pressas, enfiou o dedo na goela e vomitou. Suou, assoou o nariz, abanou-se sentado por longos minutos até voltar à casa paroquial, onde refestelou-se de um café à antiga. A cachaça fora batizada com este nome por um velho louco que perambulava pelas ruas há muito tempo e como não incomodava, deixavam-no à vontade, davam-lhe esmolas, agasalhos...Esse mesmo velho foi um dia funcionário da destilaria e contam que ficou assim por ter bebido demais da bebida da terra. Nas festas populares não era permitido vendê-la, só os turistas compravam, bebiam, e nunca deram vexame tão calamitoso na cidade. O caso dos párocos e do velho eram um mistério. Os outros habitantes não se arriscavam a beber de medo e por isso era justificada ali a presença de um padre estrangeiro, pois já haviam tentado manter na vila outros cinco padres cujo destino não fora diferente do último. Assim, no primeiro dia de confissões o velho compareceu e foi o último, como de praxe, afinal, mendigos não tem prioridade em lugar nenhum. Todos os dias daquela semana o padre fizera o mesmo ritual no alambique, bebia, vomitava e voltava, e não descobrira o que havia de ser especial naquela bebida, temeroso em permitir-se e reticente quanto à quase certeza de que não passava de crendice, até aquele sábado das confissões matutinas quando à noite seguiu uma trilha já mentalizada e parou em frente a uma choupana velha, onde foi recebido com um copo na mão, ao que bebeu prontamente. Não enfiou o dedo na boca desta vez, fez careta, pigarreou e foi entrando. Na entrevista do padre investigador constava uma pergunta só: Por que "parêntese"? O velho, que já no confessionário havia pedido perdão a Deus por roubar bebida, por gostar da bebida e por embebedar quem gostava, tinha rezado as tantas Ave-marias e os Pai-nossos recomendados. O sacerdote, um poliglota conceituado no clero internacional, sabia que os pecados numa vila eram pecados bem menores que os das metrópoles que conhecia, e beber para ele, apreciador de vinhos e destilados que era, não significava aborrecimento algum, nem vexame, loucura, desvario ou doença. Nem pecado. A própria igreja o ensinara a virtude do auto-controle. Diante da pergunta feita entre um trago e outro, o velho revelou sobre o nome da cachaça que escolhera: parêntese - era usado quando se queria omitir ou acentuar o conteúdo que está contido nele - neste caso para esconder mesmo, por se tratar de produto perigoso para indivíduos desacostumados a emoções fortes, como fora o caso dos padres que se viram tentados após as confissões do velho, e se desgraçaram. Padre Strauço, era chamado assim pelo povo, havia achado o seu lugar no mundo. E a melhor cachaça do mundo fez deste viajante um eremita isolado preso a seus afazeres diários, a seu rebanho, à sua horta, ao novo amigo e a Deus, que ultimamente torcia o nariz pras novidades tecnológicas dos homens, pois estavam cada vez mais corcundas em frente às telas. Deuses prezam pelo belo...os homens são só perfectíveis. Onde cada um tem seu trabalho, cada trabalho uma importância, cada importância um tempo e tanto tempo pra tanta coisa... dona Nevinha não queria mais outra coisa senão lembrar do dia em que foi a mulher mais importante do mundo, como nunca havia se sentido, nem no dia do seu casamento se percebeu tão amada. Esperança Vã, num lugar com nome tão sugestivo, ninguém há de duvidar que bêbados operem milagres. E que o capitalismo ainda não tenha vencido a crendice popular e tornado o produto nativo uma marca para exportação, onde padres bem doutrinados se guiam por loucos ou filósofos, onde parêntese se escreve assim no rótulo "par-em-tese", para ratificar os níveis de escolaridade da maioria dos municípios brasileiros.

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