domingo, 30 de novembro de 2008

Sem título

Eu.
Eu sou.
Eu sou a filha.
Eu sou a filha da estrela.
Eu sou a filha da estrela Dalva.
Eu sou a filha da estrela Dalva, minha mãe.

*

- Quem, D. Dalva? E não é D. Maria de Seu João?
- O nome dela é Maria Dalva, mulé. Deve tá uma tristeza lá dentro...vamo entrar não.
- Eu soube que foi duma traição, parece que ficou doida ainda moça.
- Tão bonita, foi internada várias vezes...
- Tu lembra duma vez que ela quebrou todas as caqueiras de Paizinha? Se não fosse a consideração por Seu João e D. Maria, sei não,... Paizinha chorava agarrada nas plantas, coitada.
- E tu lembra que a doida foi parar no clube operário no meio de um baile? Foi, e com as flores arrancadas do jardim de D. Maria... de madrugada. D. Maria nunca negou flor a quem passava pedindo nos dias de velório, tinha as plantas mais lindas da rua. E hoje vão enfeitar o caixão da própria filha.
- Imagine ter uma filha louca...
- Deus me livre. Olha ali, parece que é uma das irmãs chegando de fora.
- É, é uma das mais novas, estudou com minha menina. Inteligente essa daí, era pra ser uma doutôra, parece que casou...num tinha quem dissesse que essa menina ia ser dona de casa um dia.
- Ah, foi essa que trabalhou na rádio, queria botar rock no horário de Roberto Carlos. Seu Diniz botou pra fora.
- Disse que deu tanto trabalho a seu João, vivia nas cachoeiras...minha menina disse que era a melhor aluna da classe, num sei como... Óia, deu tchau pro lado de cá, deve ter me reconhecido, andou em casa umas duas vêz...
- Chegou mais outra. É, no dia da morte é assim, todos aparecem, ainda mais num caso desse...suicídio, creindeuspai!
- E foi só um tiro. Também, mulé, deve ter sido um alívio, pra ela e pra família, né?
- Pra cê ver o que a traição pode fazer com uma mulher, tem quantos anos que ela era doente?
- Muitos. Ah, minha fia, Zé que não se meta a besta, douli um castigo, e não deixo ele não, mas vai comer o pão que o diabo amassou. Eu é que não ia ficar louca.
- Eu não corro esse risco, Naldo é evangélico, graças a Deus.
- Óia, o caixão vai sair...
- Ên-en, ô coisa triste é velório.

*

P.S. Relato autorizado por familiar, baseado no falecimento de Maria das Neves Feitosa, esquizofrênica, ocorrido há exatos 18 anos atrás.

Um comentário:

  1. A Marta abandonou o estilo pop. Passeou no puro regionalismo universalista. A morte, o suicídio a questão do outro em estado de muita diferença. Inclusive a loucura e a estrutura familiar. Um texto claramente são franciscano, quem conhece aqueles falares é como se ouvisse, com imensa alegria, que apesar da rede globo de telenovelas, os sotaques floridos continuam vivos onde nasceram. A Marta foi tão explicita que até pensei que ela fosse a locutora de rádio que tentou rock em substituição a Roberto Carlos. E este Diniz posso ter conhecido. Um grande amigo, o Malan, tinha um cunhado em Petrolina com este sobrenome.

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