Aquele dia parecia, assim especial e a cidade se engalanou. Ainda cedinho, adentrou a vila o famoso “ Circo Moscovita”. Já chegaram fazendo alarde, com uma retreta pelo meio : palhaços, mágico, anões, equilibristas, mulheres em biquinis sumários desfilando pelas ruas da cidade e convidando a todos para os espetáculos que aconteceriam, como sempre, em curtíssima temporada.
--- E o palhaço o que é?
--- É ladrão de mulher !
Matozinho respirou fundo e vestiu a sua melhor roupa para receber os artistas que chegavam . Armaram o circo na beira do Paranaporã que estava com pouca água, quase batendo piaba, naquele tórrido setembro. Todos os artistas chegaram espremidos em duas kombis velhas. Todos tinham muiltifunção. O dono, já idoso, fazia mágicas, a esposa era sua partner; os malabaristas , trapezistas, equilibristas e palhaços e as esposas todos subiam ao picadeiro à noite e, durante o dia, cuidavam da infra-estrutura circense. Eles mesmos esticaram a empanada velha , tipo mini-saia, também chamada de “tomara-que-não-chova” e prepararam o espaço para as apresentações. No meio um picadeiro precário e acima alguns balançadores, em feitio de trapézios. Parte das acrobacias aéreas podia ser vista de fora, por quem não tinha comprado o ingresso e ficava ali arriscando uma possível “hora dos miseráveis”. Ao derredor, montaram três barracas que acomodavam todo o elenco do circo. Falavam com um sotaque carregado tentando demonstrar uma possível, mas improvável, origem estrangeira da trupe , uma mistura de espanhol-inglês-francês-pernambucano , quase um esperanto ! Era uma ingrizia de famílias e filhos dos mais diversos relacionamentos que parecia difícil, aos de fora, entender a divisão de espaços. Coisas de artistas.
O “Moscovita” chegou numa quinta a Matozinho, já com um corso pelas ruas da vila. Feitos os contatos políticos, escolhido o espaço para alocação do circo, marcaram a estréia para o domingo à noite. Distribuíram-se, como é de se esperar, cortesias para todas as altas autoridades locais. Prefeito, secretários municipais, juiz, vigário, delegado , cabo e soldados. Durante a sexta e o sábado os artistas , nos intervalos da montagem, desfilavam pela cidade, convocando a todos para os espetáculos.
No domingo à noite, a beira do Paranaporã parecia uma Broadway. A casa estava repleta de pessoas de todas classes sociais. Nos camarotes da primeira fila, o juiz Dr. Hermenegildo Bembém e a esposa; o prefeito Sindé Bandalheira e a primeira dama, D. Guilhermina; o presidente da Câmara Saturnino Bilhar com a esposa; Padre Vanderico; Gumercindo Seridó , o delegado , junto com a esposa e a filha Tequinha de uns oito anos; todos eles perfaziam quase que uma mesa solene de abertura dos trabalhos. De repente, após um ruflar de tambores, uma voz em off anunciou o início do espetáculo:
---“Senhoras e Senhores, distinto público de Matozinho, o Circo Moscovita, com a graça de Deus e de São Jorge e Padre Cícero tem a honra de apresentar o espetáculo desta noite. O Drama : “O Cego de Barcelona”.
De repente, quatro atores invadem o palco, com um figurino paupérrimo e encenam por uns trinta minutos um dramalhão destes de deixar a platéia em lágrimas. Seguiram-se o mágico encantando a platéia, os malabares, o equilibrista. Os matozenses estavam tomados de um maravilhamento incontrolável. E vejam que ainda faltavam várias atrações, entre elas os trapezistas que geralmente fechavam com chave de ouro a noite esplendorosa. Ninguém esperava o contratempo que estava prestes a surgir. De repente, entram no picadeiro os palhaços “Bolachinha & Biscoitão”, como se sabe, palhaço de circo pobre é quem segura a barra. Outra característica é que geralmente apelam para piadas mais picantes . Bolachinha e Biscoitão não fugiam à regra, contarem umas duas piadas de papagaio e umas outras duas de putas e bichas, o que já deixou o primeiro pilotão de camarotes arrepiado. O pior era o bordão da dupla repetido a cada minuto e seguido de movimentos sensuais de cadeiras:
--- Ai , minha fia, aprume o buraquim, só vai muiando...!
O delegado Gumercindo não agüentou muito tempo. Além da filha presente, o vigário, a primeira dama, a mulher do juiz... Resolveu acabar com aquela putaria de uma vez por todas. Chamou, imediatamente, o Cabo Inocêncio e autorizou:
--- Cabo, isto aqui virou um verdadeiro cabaré. Onde já se viu tanta esculhambação junta ? Nem na Rua do Caneco Amassado! Tome as providências imediatamente, cabra !
O cabo, mediante a ordem dada, invadiu o picadeiro de cacetete em punho e deu umas duas lapadas no couro dos palhaços , enquanto gritava:
--- Que putaria é essa, seus filhos de rapariga ? A mãe de vocês só pode ter uns priquito tudo afolosado, seus chupador de caceta ! Se vocês continuarem com essa putaria, sem respeitar as autoridades presentes, vou enfiar esse cacetete no olho do cu de vocês , rodar dentro até lascar todas as pregas , até a prega rainha ! Vocês não tão vendo meu galão não ? Não respeita um cabo, não ? Tão pensando que esssa divisas aqui no meu peito foram pregada foi com sebo de pica, foi , suas quenga desclassificada?
Depois dessas reprimendas bem dosadas, as autoridades locais respiraram fundo e a moralidade finalmente foi restabelecida na cidade de Matozinho. E o espetáculo pode continuar candidamente e sem interrupções.
J. Flávio Vieira
Seu texto segurando firme o fio da meada, com bom-humor e sutilêza.
ResponderExcluirAcho que Matozinho existe e acho que tem velox por lá...será?
Meu caro JFlávio,
ResponderExcluirdeixe-me dar-lhe um forte abraço.
Sorrir - gargalhar baixinho com leveza de espírito é uma dádiva,
sobretudo após a retórica refinada e convincente do cabo.
Admiráveis abraços.
Abraço à Marta e ao Domingos pela paciência de ler o texto.Bom ter vcs como leitores tão assíduos.
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