sábado, 28 de fevereiro de 2009

A Troça


“E qual é a natureza do Deserto ?
é uma terra onde todos vivem uma vida
falsa, fazem a mesma coisa que os outros
fazem, do modo como lhes foi ensinado,
sem que ninguém tenha coragem de viver sua
própria vida.”
Joseph Campbell


Para Campbell (1904-1987), um dos mais profundos estudiosos da Mitologia, existem duas forças inconscientes na raça humana impulsionadoras das histórias mitológicas. A primeira delas é a nossa Finitude . Somos espécie extremamente perecível e de vida curtíssima se comparada , por exemplo, aos reinos mineral ou vegetal ou mesmo a outras espécies menos desenvolvidas como as tartarugas. Este terror da estrada tão curta e com tantos abismos nos assalta a cada passo. A outra delas é a constatação da nossa selvageria intrínseca : para sobrevivermos temos que devorar outras espécies diariamente , vegetais ou animais. Este destino canibalesco nos persegue sem trégua. Parece-nos aterrador , com tanto desenvolvimento humano, com tanto avanço tecnológico, não conseguirmos escapar das mais primárias leis da floresta. Para escapar no planeta , mesmo dentro dos limites apertados da nossa finitude, temos que utilizar meios não diferentes do lobo e do chacal. A maior parte dos mitos, assim, surgem de forças inconscientes que buscam , como um mecanismo de defesa, minorar um pouco esta constatação aterradora: por mais importantes e civilizados que os homens se sintam, não passam de canibais de vida brevíssima.
Assim, os rituais de morte em toda nossa trajetória aqui pela terra são carregados de significado. Quase todos pregam uma possibilidade de transcendência. A vida não é só esta curta passagem terrestre, mas continuaria infinitamente em outras dimensões. As cerimônias religiosas variam histórica e geograficamente, mas todas carregam consigo este potencial mágico de prolongar a existência humana. Algumas em espírito como na Umbanda, no Kardecismo e no Budismo; outras como entre os Cristãos, os islâmicos e os egípcios : em corpo e alma. O anverso e reverso desta mesma moeda estão, como era de se esperar, ligados umbilicalmente e a outra dimensão mágica desta vida é necessariamente um reflexo da dimensão real. Do outro lado colheremos o que plantamos por aqui ou teremos que continuar semeando por lá até que nasçam frutos opimos e saborosos.
Entre nós os rituais fúnebres são bem mais leves entre os Kardecistas, os Budistas e no Camdomblé . Entre os Cristãos percebe-se que , mesmo com a promessa inconteste de ressurreição plena futura , existe uma difícil digestão da partida final. Talvez porque o sentimento de culpa que nos é imposto desde a infância seja aterrorizante. Nascemos já com uma dívida de uma maçã digerida ainda no Gênesis e com a pena eterna da crucificação de Cristo; além dos espectros do inferno e purgatório a nos perseguir. O pavor do julgamento final, por mais misericórdia que se pregue na imagem do Criador, é sempre vultoso. As religiões que acreditam na Reencarnação , por outro lado, apresentam a cômoda possibilidade de se pagar a dívida eterna em módicas prestações reencarnatórias. Diferentemente, em Nova Orleans , o berço do jazz, os funerais começam geralmente acompanhados de bandas afinadíssimas tocando blues , mas a partir de um certo momento, atacam com músicas animadas e carnavalescas e as pessoas dançam e pulam, inclusive o fazem com o próprio caixão, incluindo o falecido no baile. É como se simulassem o ritual de morte-renascimento. Choramos pela morte, mas comemoramos o renascimento neste mesmo instante
Talvez, por tudo isto, o Carnaval, entre nós , seja uma festa tão gigantesca e de tanto significado mitológico. Claro que estou me referindo a um Carnaval como de Olinda e Recife. O de Salvador é uma indústria de entretenimento, perdeu toda característica de uma festa popular. A maisena foi substituída pela Caixa Registradora. O período momino nos dá uma espécie de salvo-conduto religioso. É como se tapássemos os olhos de todos os vigilantes da moralidade por cinco dias. Quebram-se as fronteiras sociais e todas as castas se misturam sem nenhum apartheid. Os códigos de conduta, os rigores do moralismo se esfacelam. Chutamos o traseiro de Apolo e caímos nos braços de Dionísio. Cada um veste seu figurino e , naqueles cinco dias, representa um personagem no grande palco da vida. O empresário se veste de urso, a mocinha de melindrosa, o rapaz de prostituta, o menino de super-herói. Tudo que acontece é perfeitamente transitório e temporário: as relações, as brincadeiras , as danças, os movimentos, os afetos. Simplesmente porque são realizados pelos personagens de que cada um está travestido. Na quarta-feira, despem-se as roupas da Cinderela e os personagens saem de cena, já não é possível encontrar a dona do sapatinho de cristal. Todos os blocos têm uma relação muito suave com a perspectiva da morte. A cada ano vão faltando foliões inveterados. Homenagens são feitas, a saudade claro, existe, mas em nenhum momento se quebra a alegria da festa. Os frevos e os bonecos gigantes eternizam o nome deles : Felinto, Pedro Salgado, Guilherme Fenelon, Raul Morais, Capiba, Nélson Ferreira, Edgar Morais, Batata, Enéas do Galo da Madrugada. Além dos antigos blocos que foram desaparecendo : Bloco das Flores, Andaluz, Pirilampos,Turunas de São José, Apóis Fum. A sensação que todos têm é que , agora, com suas ausências naturais, os que ficam têm que manter a tudo custo alegria e a ludicidade da festa. Existia em Olinda um senhor humilde chamado Mário Raposo e que todo carnaval se vestia de fraque e cartola e incorporava um personagem conhecido por todos : “O Lord”. Há dois anos seu Mário partiu e, defronte da sua casa, na Rua do Amparo, há um pôster extremamente significativo, colocado desde então em todo Carnaval . Um retrato grande do Lord e abaixo : “ Mário Raposo – Saudades Sim, Tristeza Nunca !”.Talvez as Cinzas da Quarta-Feira já tenham sido colocadas estrategicamente depois da folia para jogar água morna no povo, trazendo-os de volta à culpabilidade da vida cotidiana.
O Carnaval traz consigo, assim, este grande potencial mitológico e terapêutico. A existência , quem sabe, é uma espécie de troça chamada de “A Vida é Maravilhosa”. Os foliões terão sempre uns poucos dias para brincar; todos se disfarçarão de muitos personagens neste desfile; muitos irão saindo , pouco a pouco , do corso e os que ficam precisam manter a alegria da festa e, mais, se divertir pelos que ficam e pelos que já não estão presentes. É preciso manter erguido o estandarte da troça: a saudade não poderá nunca se transformar em tristeza. E, como nunca se sabe quando a festa acaba, é mergulhar no passo, antes que no horizonte irrompa a quarta-feira ingrata com suas cinzas de chumbo.


J. Flávio Vieira

2 comentários:

  1. Meu caro JFlávio,
    trocando em miúdos:
    quem brincou se esbaldou,
    quem não brincou termine de rezar o terço.

    Sério:

    O trágico - em se tratando de atmosfera mítica - é que há aqueles
    que ao cantarem e festejarem os mortos (de tão intenso delírio) acabam semelhantes a estes na urna funerária.

    Belíssima crônica sobre uma Festa Popular cujo sentido para muitos é apenas de folia extrema e carnal.

    Admiráveis abraços.

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  2. Caro Domingos,

    Agradeço a vc a paciência de ler o catatau e fico muito feliz que tenha gostado. É bom ter os poetas como leitores, eles sabem o caminho das pedras e encontrar o diamante em meio aos escolhos.
    Abraço,

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