domingo, 22 de fevereiro de 2009

"Um poema"


Uma vez escrito mais um poema,
e nele você chorar não o seu choro,
mas o choro dos meus olhos culpados
da aridez na paisagem assediada
de desejos, uma valise de êxtases
que se esfumam à luz, à fúria do Éolo
que resvala na epiderme dos prédios
sem vida, cruéis ao meu sonho cinza

Para você mordiscar a nervura
desse silêncio que recobre tudo
o que fere e não é poesia,
não cabe nas colunas do poema

O certo era não ter coração
não ter olhos e não tomar parte
no pão que o dia reparte entre
os que de rosto branco se procuram
se irmanam, grogues no parque central,
quando cruzam a avenida, um táxi,
um ônibus, o susto sob a espuma
da cerveja, fulgor da tarde em fuga
do calor, sempre com o rosto branco


O certo era ter uma palavra
laminada, lisa, pura, tão pura,
livre do peso das contradições,
as únicas flores que há na calçada,
as palavras a mil metros das cores
nas roupas, palavras roucas, os carros
no caos de buzinas, contra o amor
a falsidade das fachadas nuas
a melhor poesia, a mais refinada
capaz de comprimir o real no ângulo
de um alfinete, depois a explosão
a mil anos da indignação


Amanhã devo pegar uma faca
tão fina de se confundir com o ar,
abrirei o peito aos primeiros passos
da aurora, o coração será limpo
com água perrier, e se nada der
errado, colarei vinte etiquetas,
vinte etiquetas vindas duma loja
da Oscar Freire, num frasco de cristal.

Um poema para você chorar
de mãos dadas com cada mãe em silêncio,
os pés nas águas do dia-oceano
o terrível da palavra terrível.
O dia sem poesia, mestre do ódio
a todas as partes da construção
ilustrada pelos rostos de figuras
perturbadas com a atracação às ruas
de quilhas atraídas pela luz

Quem sabe esse poema de extrair
dos seus olhos parte de um desespero
enclausurado na noite, a mais
perfeita herança dessas cercanias
onde dormitam todos os desertos
pedras em chamas, terra calcinada
esse poema de dores e espanto
expulse você do sono. Acorde!
seu coração nunca mais será o mesmo


Nunca mais, nunca mais, nunca mais, nunca



São Paulo, 2008.

2 comentários:

  1. Um poema que
    da mesma vociferação
    também ecoa em sussurros -
    mas sempre pungente
    e com voz entrecortada.
    Assim o leio.

    Abraços,
    meu camarada.

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  2. Esse poema, meu caro, vem de um duro diálogo que travo com esta cidade há muitos anos.

    Você captou bem o espírito.

    Um forte abraço.

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