Aquém e além do fanatismo O artigo de Antonio Cicero faz uma reflexão inteligente sobre as falsas verdades absolutas: ANTONIO CICERO A ética e a religião
EMBORA TALVEZ já se tenha falado até demais sobre o episódio da excomunhão da mãe que autorizou o aborto da filha de 9 anos que havia sido estuprada pelo padrasto, bem como dos médicos que a fizeram abortar, quero ainda chamar atenção para uma coisa. É que a condenação quase unânime, pela opinião pública, tanto ao arcebispo que anunciou a excomunhão quanto à Igreja Católica foi de natureza moral. Em outras palavras, considerou-se, de maneira geral, que a Igreja estava moralmente errada ao condenar esse aborto; ao dar mais importância à sobrevivência do feto do que à vida e ao bem-estar da criança de nove anos; ao excomungar a mãe, que pôs a vida e o bem-estar da filha que ama acima da vida do neto ainda nem sequer nascido, e que havia sido concebido em circunstâncias traumáticas tanto para ela quanto para a filha; e ao excomungar os médicos que agiram segundo a sua ética profissional e de acordo com as leis do país. Ora, é evidente que essa condenação moral à Igreja não é de origem religiosa. Pois bem, as religiões se consideram a fonte de toda ética. É assim que, sempre que a imprensa destaca um crime hediondo, o aumento dos índices de criminalidade ou um episódio de corrupção de políticos, os moralistas religiosos aproveitam para se manifestar na imprensa. Em artigos ou cartas de leitores, eles apontam, como a causa da proliferação de tais acontecimentos lamentáveis, o descaso contemporâneo de grande parte da população pela religião e, consequentemente, pelos valores cristãos. Ultimamente esse descaso tem sido associado -quando não atribuído- ao relativismo. O exemplo foi dado pelo cardeal Ratzinger que, às vésperas de se tornar o papa Bento 16, advertiu que "estamos a caminho de uma ditadura do relativismo que não reconhece coisa nenhuma como certa". Supõe-se, assim, que uma pessoa que ache, por exemplo, que não há certo ou errado absolutos, mas que tudo depende da cultura a que cada qual pertence, relativiza, ipso facto, as regras morais e as leis que imperam na sua própria cultura, o que lhe torna mais fácil contemplar a violação dessas regras e leis. Digamos que isso seja verdade. Dado esse "diagnóstico", o "remédio" prescrito pelos moralistas é, evidentemente, a volta às "certezas absolutas" da religião. Mas como, se as "certezas absolutas" das religiões caíram exatamente porque jamais foram realmente certas? A verdade é que não é possível racionalmente voltar para aquém do relativismo. O relativista cultural, por exemplo, sabe que foi por uma série de circunstâncias aleatórias que ele veio a ser, digamos, cristão; sabe, portanto, que, se tivessem sido outras as circunstâncias, ele teria sido, talvez, muçulmano ou budista. Basta-lhe saber isso para reconhecer o caráter contingente -e por isso relativo- de todas as religiões, inclusive da sua. Como, então, fingir que as "verdades" dela sejam superiores às das outras, ou às do irreligioso? É claro que ele poderia declará-las superiores exatamente por serem as suas: os outros que tenham outras verdades. Mas o que seria isso senão exatamente... relativismo? Contudo, se não se pode voltar para aquém do relativismo, por que não ir além dele? Não será, exatamente o reconhecimento de que é possível que a verdade não esteja comigo, mas sim com o outro, o princípio de uma ética universal? Por esse princípio, obrigo-me (seja quem eu for) a respeitar a liberdade do outro (seja quem ele for) até o ponto em que a sua liberdade não tolha a minha. Esse princípio se manifesta também na chamada "regra de ouro", que diz "não faças ao outro o que não queres que te façam". Tal regra não pertence a esta ou àquela religião positiva. Exprimindo simplesmente um procedimento racional de reciprocidade na convivência social, ela foi, por meio das mais diferentes formulações, expressa não apenas por cristãos, mas por zoroastristas, confucianistas, judeus, hinduístas, budistas, ateus etc. É desse modo que o relativismo é superado pelo reconhecimento de um princípio absoluto puramente racional e negativo. Voltando agora ao episódio mencionado da excomunhão, podemos dizer que é esse princípio puramente racional e negativo que, em última análise, permite-nos julgar os preceitos das religiões positivas; e que são estas que, ao mesclar regras irracionais e particulares a princípios éticos racionais, logo universais, acabam por relativizar e enfraquecer estes últimos. Texto pubblicado na FSP de 20/03/09 |
Caro Maurício,
ResponderExcluirMuito interessante o artigo do Antonio Cícero. O relativismo na ética é um pântano, entrou-se nele não há mais como escapar na arreia movediça. Cada um pode utilizar o relativismo, acreditar, por exemplo, que o certo/errado estão determinados nos livros sagrados. Só que ninguém tem o direito ético de se contrapor ao relativismo alheio. Ou buscamos caminhos mais universais para discutir ética ou caimos nas besteiradas feitas pelo gagá Dedé. Kant já havia ensinado : "age de maneira que o máximo de tua vontade possa ser utilizada como uma lei universal"
é isso aí, José Flávio.
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