Antônio Vicelmo
Repórter
Nordeste reverencia hoje seu santo popular
O Nordeste se ajoelha hoje para reverenciar a memória
do Padre Cícero, nos seus 165 anos de nascimento
Crato. Em 24 de março de 1844 nascia Cícero Romão Batista, que, em 90 anos de vida — faleceu em 20 de julho de 1934 — testemunhou fatos marcantes, transformando a história de um povo. Já como Padre Cícero, foi suspenso das ordens sacerdotais e quase excomungado pela Igreja Católica, ao protagonizar o fenômeno conhecido como “Milagre de Juazeiro”. O certo é que ele foi e continua sendo um personagem capaz de suscitar muitas polêmicas não só na Igreja Católica, mas, também, no meio acadêmico brasileiro.Para a elite intelectual da época, a excomunhão, que não foi oficializada porque não chegou ao conhecimento do sacerdote, seria “o tiro de misericórdia” na fé do povo que o tem como santo.
O tiro saiu pela culatra. Perseguido, injustiçado e proibido de exercer o ministério sacerdotal, tornou-se vítima da Igreja que ele tanto serviu com desvelo e dedicação.Na cabeça do homem simples do sertão, as acusações de “embusteiro, coronel e fanático” transformaram-se num libelo em sua defesa. O padre estava sendo vítima da intolerância. Nascia então o “santo nordestino”, cearense, cabeça chata, com a cara do povo, trazendo no currículo a mesma história de vida de milhares de sertanejos, “sem eira nem beira”, que ainda hoje tentam romper com as intransponíveis barreiras dos preconceitos sociais, políticos e religiosos.
A imagem do Padre Cícero ainda não subiu aos altares das igrejas, mas ocupa o mesmo espaço dos santos canonizados nas feiras livres do sertão. O vendedor de imagens Severino Paulino, que há 50 anos vende quadros dos santos mais populares da Igreja Católica, diz que a estampa mais vendida é a do Padre Cícero.“Nem mesmo o quadro do Coração de Jesus e Coração de Maria é tão procurado quanto o do meu Padim”, diz Severino, confessando-se ardoroso devoto do sacerdote caririense.Hoje, 75 anos depois de sua morte, a mesma Igreja que o condenou no passado, tenta reabilitá-lo.
Quando dom Fernando Panico assumiu a Diocese do Crato, em 2001, o então cardeal Ratzinger — hoje, papa Beto XVI — lhe pediu que revolvesse os arquivos e pesquisasse tudo sobre o sacerdote já canonizado pelo povo. O ponto de partida foi a formação de uma Comissão de Estudos para o Processo de Reabilitação Histórico-Eclesial do Padre Cícero Romão Batista. No dia 30 de maio de 2006, dom Fernando entregou à Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma, cerca de 2.500 páginas (11 volumes) e cinco anos de pesquisas, solicitando a reabilitação do sacerdote.
A entrega foi acompanhada pelo Diário do Nordeste que enviou um repórter para documentar o fato histórico.Três anos depois da entrega do processo, pouca coisa evoluiu. Depois que os documentos ultrapassaram os muros do Vaticano, uma cortina de silêncio cobriu o assunto. Ouvido pela reportagem, dom Fernando afirmou que não tem nada a acrescentar. Revelou que, no mês de maio, voltará à Itália, numa viagem particular. No entanto, vai tentar colher informações sobre o andamento do processo. Antecipou, entretanto, que talvez não consiga nenhuma informação.Na carta ao papa Bento XVI, por ocasião da entrega dos documentos à Congregação para a Doutrina da Fé (e já publicada pelo Diário do Nordeste em 11.6.2006), dom Fernando afirmava: “Venho, com toda esperança e humildade, suplicar a Vossa Santidade que se digne reabilitar canonicamente o Padre Cícero Romão Baptista, libertando-o de qualquer sombra e resquício das acusações por ele sofridas”.Enquanto a reabilitação não vem, o nome do Padre Cícero cresce como um dos santos mais populares do Nordeste.
A própria Igreja, que tratava os romeiros com indiferença, abriu as portas e o coração para acolher os milhares de devotos do cearense do século.O tom dessa mudança foi dado por dom Fernando Panico em sua primeira Carta Pastoral aos diocesanos, quando afirmou: “É impossível não levar em conta, na minha missão de Bispo de Crato, a situação muito especial da cidade de Juazeiro do Norte, que é um importante centro de romaria no Nordeste por causa da memória que o povo cultiva, com muito carinho e devoção, do Padre Cícero Romão Batista, presbítero da nossa Diocese que merece nosso carinho, apesar de tudo o que contra ele aconteceu e se tem escrito. Desejo reforçar os cuidados pastorais em favor dos milhares de irmãos e irmãs, na maioria absoluta, pobres, romeiros de Juazeiro do Norte”.
PROCESSO NO VATICANO
Expectativa é pela reabilitação
Crato. Não é segredo para ninguém que Padre Cícero, a seu tempo, foi condenado pela Igreja Católica, especialmente por essa instituição no Ceará. Essa condenação foi um longo processo que se iniciou muito antes do famoso decreto do Santo Oficio – atual Congregação para a Doutrina da Fé – de abril de 1894, que afirmava ser o sangramento da hóstia um fenômeno vão e supersticioso. Portanto, mentira e fraude. Ao relembrar estes fatos, a psicóloga Maria do Carmo Forti analisa que sua reabilitação não é indiferente para os romeiros.Padre Cícero, segundo a psicóloga, amava a Igreja Católica, lutou a vida toda para reaver suas ordens sacerdotais, viveu sempre dando testemunho de seu amor a Deus, à Nossa Senhora e à Igreja. Sofreu como poucos por não poder viver plenamente seu sacerdócio. O devoto, segundo Maria do Carmo, quer ver o Padre Cícero reconhecido também pela Igreja a quem dedicou sua vida.A psicóloga, que faz parte da comissão que elaborou o documento de reabilitação, orienta que a Igreja reveja todo processo agora com os documentos que, por quase 100 anos, ficaram arquivados na Cúria da Diocese do Crato.
Esses documentos, segundo a psicóloga, revelam os bastidores de toda história da “questão religiosa do Juazeiro” e foram estudados pela Comissão de Estudos para a Reabilitação Histórico-Eclesial do Padre Cícero.“Foram compulsados documentos até então inéditos; foram lidas e catalogadas centenas de cartas, cujo conteúdo ninguém conhecia antes, revelando como se deram os encaminhamentos para as decisões tomadas, desfavoráveis ao Padre Cícero Romão Baptista”, diz ainda a carta entregue no Vaticano pelo bispo da Diocese do Crato, dom Panico.“Portanto, é fundamental que a Congregação para a Doutrina da Fé saiba, exatamente em que, em quais idéias, pensamentos, sentimentos, ela, entre os anos 1893 a 1926, emitiu seus pareceres e decretos”.
Ao fazer esta advertência, Maria do Carmo analisa: “É muito provável, eu pelo menos acredito nisso, que o então cardeal Ratzinger tenha percebido que os documentos que constam nos Arquivos do Vaticano não eram suficientes para se entender o caso do Padre Cícero. Por isso seu pedido para que fossem abertos os arquivos aqui do Brasil”.Para Maria do Carmo, o Vaticano já respondeu ao pedido do povo. A abertura dos arquivos da Cúria do Crato demonstra que a Congregação reagiu a esses muitos pedidos. O que a instituição ainda não fez, nem podia fazê-lo, segundo a psicóloga, era dar uma resposta a eles. Isso porque quem deve pedir a reabilitação é o bispo da Diocese à qual Padre Cícero pertencia na época.
Foi o que fez dom Panico. Mas não só ele, é bom que se diga. A petição para a reabilitação do Padre Cícero foi assinada por 274 bispos do Brasil que, pouco antes da viagem a Roma para entrega dos documentos, estavam reunidos em Assembléia em Itaici, São Paulo.É a Igreja do Brasil que reconhece que a Santa Sé deve considerar, com muita seriedade, esse pedido, porque o Padre Cícero merece. É uma questão de fazer justiça para com os romeiros de Juazeiro do Norte “visitar” Padre Cícero e Nossa Senhora das Dores numa atitude de resistência e de fé, apesar de todas as discriminações.
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