domingo, 8 de março de 2009

Gesta

Era uma terra diferente, de hábitos e costumes excêntricos. Desde tempos imemoriais alguns homens olhavam exclusivamente para o chão e outros tinham, eternamente, os olhos fixos no firmamento. Talvez, por isto mesmo, os telúricos e os celestes, naquele país, se compreendessem tão mal. Aqueles viviam absortos demais com as pendências terrestres e os celestes, fixos no céu , sonhando com outros mundos e outras galáxias, não tinham tempo suficiente para cuidar das questões mais concretas e mais rasteiras. Os corpos se tocavam, utilizando uma linguagem Braille, mas as almas, sobrevoando planetas tão díspares, jamais se encontravam. O convívio dos seres telúricos e celestes previa-se conflituoso. Em verdade como que se mostravam habitantes de dois planetas distintos.O estado guerra era inevitável. Mais afeitos à vida concreta , com os pés fincados no chão, os telúricos tomaram conta do país. Ocuparam todos os espaços possíveis e até inimagináveis, usufruíam das benesses do solo e viviam zombando dos seres celestes: de olhos distantes, sonhando com estrelas inalcançáveis. Com o tempo, os celestes se organizaram , buscando lutar por uma nesga da terra tomada pelos telúricos . Para tanto começaram a usar espelhos , em feitio de retrovisores, buscando obter uma visão limitada do chão. Forçaram tanto os pescoços que um dia passaram a ter a visão da terra que lhes faltava e, assim, empreenderam uma luta titânica em busca do tempo perdido. Passaram a ocupar lotes e mais lotes, vilas, campos e montanhas. Só um dia perceberam, depois de muitos anos e muitas batalhas vencidas, que haviam perdido a visão privilegiada do céu e que já não podiam contemplar os astros , o relâmpago, a lua e as estrelas riscantes . Haviam perdido o bem maior dos celestes: a capacidade de voar nas asas do sonho.
Engraçado é que mesmo com esta mudança de hábito dos celestes, os conflitos com os telúricos não diminuíram . As almas não comungaram no mesmo altar. É que agora eles todos eram parecidos demais: olhos fitos no chão, os mesmos rasteiros objetivos a alcançar. Diz a lenda que ,numa manhã azul, um meteoro gigante caiu no país, dizimando toda a população, sem que ninguém ao menos, hipnotizado pelo chão, tenha percebido a catástrofe previsível.
Veio-me à mente esta parábola no Dia Internacional da Mulher. Como o menino que deixa o pastel para degustar por último na festinha de aniversário, assim o fez o criador.Depois de tantos e tantos borrões, debuxou sua obra prima. Deu-lhe asas e a fez celeste, abriu-lhe todas as comportas da sensibilidade para que pudesse ler todos os mistérios da criação no mais minúsculo dicionário das coisas pequeninas e mais simples. Dotou-a ainda da capacidade única de gestar, de continuar toda a obra do gênesis, dia após dia.Desconfio que foi a mulher e não o homem que o Criador fez à sua imagem e semelhança. Esta sensibilidade à flor da pele permitiu à mulher direcionar todos os rumos da humanidade, sem que aparecesse nos livros de história, trabalhando na coxia, nos bastidores, penetrando, sorrateiramente, nas clareiras mais inacessíveis do espírito humano.Não traçaram a história do mundo os grandes guerreiros, os estadistas habilidosos. Há uma pena mágica e matriarcal que escreveu cada página da história, sem que ninguém sequer se apercebesse.É que a mulher tem o segredo do cofre do coração onde ficam depositados as grandes aspirações , as tempestuosas pulsões e os espinhos do desejo.
Um dia a mulher , senhora dos céus, inebriou-se com a beleza concreta e fugaz da terra.Como os outros seres celestes, vendo os homens proprietários de tantos castelos de areia, quis , também, construir os seus. Imaginou que possuía o sagrado direito de trilhar o mesmo caminho do homem, enganosamente atapetado de flores. Sequer perguntou aonde aquele caminho ia dar, se findava em luz ou treva. Assoberbada pelas tarefas domésticas, pela agora irregular criação dos filhos, buscou a dignidade de um trabalho que ajudasse no sustento da casa e que não a deixasse na rua da amargura se o casamento um dia arrefecesse. Caiu no redemoinho do mercado de trabalho e hoje já não acompanha o crescimento dos rebentos e, como todos os telúricos, tornou a mágica experiência da vida uma mera planilha contábil, uma tabela de Deve-Haver. Pés fincados no solo, afasta-se de relacionamentos mais duradouros, como o cão da cruz . Já não olha para o firmamento, pois o arco-iris dos telúricos brilha como um mero Código de Barras. Junta sua ilha de solidão ao arquipélago de todas as solidões. O caminho incerto é palmilhado , seguindo os passos dos homens, aportando de quando em vez na ilha do enfarte, na montanha da ansiedade, no abismo da depressão: únicos pontos turísticos desta viagem do não sei-de-onde para não-sei-prá-onde.
Perdoe-me, a mulher, estas elocubrações numa data tão festiva.Não pretendo turvar de pessimismo as comemorações deste dia , com aquilo que pode parecer um machismo disfarçado. O homem ,com o corpo lambuzado de chão, já não tem futuro. Vocês representam o ponto ômega da criação, são mais verdadeiras, mais destemidas. A sensibilidade de todas vocês mostra-se como a única esperança deste mundo, a possibilidade derradeira de refazer o gênesis separando a luz , da treva , a vida do caos.Fitem o céu ! O Dia de vocês é também o dia de todo o planeta.


J. Flávio Vieira

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