segunda-feira, 18 de maio de 2009

Guerreiros do sol e donzelas da chuva (e a origem da palavra baitola)

Lampião, facínora e herói, súdito e rei, temido ao empunhar um Wincherster .44 ou um punhal de três quinas, mais parecia uma donzela prendada quando manuseava uma singela maquininha Singer para bordar os seus bornais. Dizem as más línguas, que ele era chegado a uns cafunés de Arvoredo, um dos seus lugar-tenentes. Além de tudo, o famigerado bandido era dono de um ego continental, onde sua imensa vaidade desaguava. Segundo Frederico Pernambucano de Mello, na sua colossal obra Guerreiros do Sol: Violência e banditismo no Nordeste do Brasil, Lampião, quando esteve em Juazeiro do Norte, convocado que foi pelo Padre Cícero e Floro Bartolomeu para receber a incumbência de combater a Coluna Prestes, sussurrou para o fotógrafo que fez aquela que é considerada sua foto clássica: “Seu Lauro, bote meu olho baixo na sombra”. Esta foto do Rei do Cangaço é equivalente à fotografia clássica de Che Guevara, feita por Alberto Korda. Portanto, imagens antológicas de dois facínoras, dois heróis, dois mitos.

Ainda sobre a clássica obra de Frederico Pernambucano de Mello, cuja leitura apenas iniciei, o prefácio da primeira edição, de 1984, traz a pena competente de Gilberto Freyre, autor de uma tirada genial acerca do título do livro: “(...) ao sertanejo do Nordeste – região de muito sol, como que masculinizante – ter faltado maior convívio com a água: uma água como que feminilizante. Feminilizante da própria culinária, nos sertões, tão masculinamente ascética. E feminilizante, também, através de uma frequência de banho de rio, de ação, além de higiênica, recreativa, esportiva, refrescante e capaz, como há quem suponha ser o caso entre gentes árabes, de atuar psicologicamente sobre impulsos bravios, atenuando-os e até adoçando-os”.

Interessante, também, é a força do progresso na extinção do cangaço, a despeito de “um cangaço pós-lampiônico que repontará nos anos de 1950 e 60, em grupos reduzidos, a exemplo de Floro Gomes Novais, o capitão Floro da ribeira do Ipanema, com cinco homens, entre Alagoas e Pernambuco[1]”. Igualmente interessante que, mesmo contrariando a força do progresso dizimador do fenômeno, esses cangaceiros pós-lampiônicos ostentavam um item da modernidade, pois todos usavam óculos escuros para protegerem as vistas do sol causticante do sertão. Talvez, além do xaxado, ritmo “sincopado como um tiroteio[2]”, estes cangaceiros extemporâneos também dançassem ao som do iê-iê-iê recém-lançado, na época, por Elvis Presley e os Beatles. Dúvida à parte, o certo é que o cangaço exerceu um forte fascínio na rapaziada influenciada pelas ondas da contra-cultura que varreram, inclusive, até os mais distantes grotões do Nordeste brasileiro. Em Recife, temos, por exemplo, toda uma cena underground cujo ícone principal é Lampião, vide os estereótipos de Alceu Valença e do seu lugar-tenente, o guitarrista e arranjador Paulo “Lampião” Rafael. Na capa do antológico disco Espelho Cristalino, Alceu posa a la Lampião (é lamp, é lamp, é lamp!).

Mas voltando ao progresso que veio apressar, no mínimo, o fim da era lampiônica, Frederico Pernambucano de Mello escreve que “curiosamente, quando as estradas de ferro e de rodagem conseguiram devassar, em caráter definitivo, os domínios até então reservados à pata de burro dos almocreves – que, ao lado dos ciganos, eram quase que os únicos novidadeiros daquelas paragens – despejaram sobre as cabeças dos sertanejos serodiamente quinhentistas todos os avanços sedimentados em três séculos de vida litorânea relativamente dinâmica. Nas zonas rurais, ainda que nas escassas manchas urbanas sertanejas, isto se deu de modo acelerado e doloroso”.

Permitam-me, caríssimos leitores, dar uma guinada sobre o próprio corpo, visto que não desviarei o tema. O processo de modernização ocorrido no sertão nordestino fez parte da ação de dominação imperialista perpetrada pelos países industrializados no decurso da Segunda Revolução Industrial, no final do século XIX e início do século XX. Na América Latina, vigorou o chamado imperialismo informal, caracterizado pela ausência de dominação política sobre as áreas periféricas. Essas áreas conservam sua situação de países independentes, mas têm sua economia voltada para o mercado externo, produzindo as matérias-primas que interessam aos países industrializados, e caindo em uma verdadeira dependência econômica com relação a esses países centrais. Essa dependência é agravada pelos maciços investimentos de capital estrangeiro, visando a implantação de uma infra-estrutura viabilizadora de exportações (ferrovias, rodovias, postos, silos, usinas e instalações frigoríficas etc).

Portanto, no final da década de 1930, o Nordeste brasileiro, fruto dessa ação do capitalismo imperialista, estava relativamente modernizado, sendo o trem e as estradas de ferro os símbolos dessa nova era. O cangaço, bem como outras mazelas obsoletas, não se encaixava mais neste panorama moderno. Precisava ser extirpado, e o foi, quase que totalmente.

Pra finalizar, visto que este texto está mais comprido do que a Estrada de Ferro de Baturité, peço vênia aos meus leitores para contar uma versão da origem da palavra baitola, expressão, pelo que consta, nascida por conta da espirituosa verve do sertanejo cearense. Por ocasião da construção da Estrada de Ferro de Baturité, sob os auspícios do capital inglês, havia um engenheiro, também inglês, que era cheio de trejeitos e frescuras. Por isso, os operários da obra nutriam uma certa antipatia pelo gringo; antipatia esta que chegava às raias da exasperação quando ele, autoritariamente, exigia maior empenho na condução da faina. Ele era, particularmente, insuportável quando, com sotaque carregadíssmo, orientava a fixação dos trilhos de acordo com a bitola estabelecida, gritando freneticamente: prestem atencion na baitola! Pronto. Surgiu então este corrosivo vocábulo, que até hoje serve para designar toda pessoa chata, arrogante, boçal e cheia de frescuras.

[1] Informação que consta na legenda da foto de Valderedo Ferreira (lugar-tenente), o chefe Floro e Faísca, publicada no citado livro de Frederico Pernambucano de Mello.
[2] Idem ibidem.

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