quinta-feira, 7 de maio de 2009

O Defluxo da Bacurinha


Invariavelmente era mesmo assim. Finalzinho de tarde havia um encontro marcado, pré-estabelecido, na Praça da Matriz. Os comerciantes iam fechando suas lojinhas, os empregados saindo do trabalho e Matozinho ia se preparando pra se envolver por baixo do manto da noite. Antes do recolhimento, uma talagada no Bar do Giba e uma conversa atirada da boca pra fora nas rodinhas da praça. Existia quase que uma pauta definida. Primeiramente as últimas fofocas da cidade , depois as notícias do estado, do país e do mundo, estas últimas filadas do rádio do Coronel Serapião Garrido, o único da cidade totalmente confiável. Os outros eram dados a emitir mentirinhas e noticiário fantasioso de vez em quando. Havia dois moderadores nestas conversas de fim de tarde , escolhidos por conta do bigodão e do poder de fogo: Rui Pincel, o filósofo da vila e o próprio coronel Serapião, proprietário da agência Reuteurs de Matozinho: o velho radião Cliper que tinha mais válvulas do que motor de Mavericks.
Naquele dia, pularam-se algumas notícias locais. Havia uma temperadíssima história de chifre envolvendo Zé Maliça, um conhecido pistoleiro da cidade, mas o homem estava presente à reunião e ninguém se afoitou a puxar o assunto, temendo chifrada na traseira e chuncho no pescoço. O primeiro item da pauta , então, versou sobre o uso de passagens por parte dos vereadores locais. Explique-se: a Câmara Municipal havia disponibilizado passagens na velha sopa de “seu Duzentos” para os vereadores, com o intuito de facilitar-lhes o deslocamento até suas bases eleitorais. A medida, grosso modo, parecia perfeitamente justificável e exeqüível, para qualquer estrangeiro que não conhecesse um mínimo de Brasil. Tudo andou às mil maravilhas até que o Conselho de Contas resolveu, claro por motivos políticos, dar um baculejo no trem da alegria. Como era previsível, descobriu o impensável. Passagens distribuídas à mancheias para parentes, aderentes , quengas, amigos e inimigos . Num só mês haviam furado o bucho do erário em mais de oitocentos mil reais. E o pior: o velho Duzentos, misteriosamente, continuava na mesma pindaíba de sempre.
--- Até o velho Tadeu Marcolino ! -- Lembrou Rui Pincel. O homem parecia um rato de igreja, carregando opa de Santíssimo e enredando tudo quanto é de mal feito ao Padre Saturnino ! Pois tinha até passagem para o lua no nome dele ! Eu nem sabia que a sopa de Duzentos tinha sido envenenada e virado sputinik!
O segundo assunto: o inverno caudaloso.
--- O velho Pedrácio parece que estrompou as torneiras do céu, lembrou Generino. Já tem sapo trepado em cabeça de estaca pedindo socorro. No Piauí, , a enxurrada foi tão grande que morreu curimatã afogada. Já tem pato nadando com bóia e jia pulando na água com duas cabaças amarradas na cintura !
Jojó Fubuia – no seu estado natural , ou seja meio melado – acrescentou de lá com a voz meio engrolada:
--- Pois num é que sonhei ontem com o velho Nicanor que morreu na enchente do Paranaporã , semana passada! Ele me contou que na enxurrada um velho observava tudo de longe trepado numa nuvem e, horrorizado, dizia que nunca na vida tinha visto um pé d´água daquele calibre. Sabe quem era o homem que se horrorizava tanto com o chuvaral, Generino ?
--- Sei lá, homem de Deus !
--- Noé, meu senhor, o velho Noé, o almirante do dilúvio !
À medida que a pauta ia sendo cumprida, os pracianos perceberam que um dos personagens centrais das encontros permanecia lacônico e de cenho contraído. O dono da Reuteurs de Matozinho. O coronel Serapião não metera sua colher de pau em nenhum dos assuntos levantados até então. Instado a tornar públicas suas preocupações, manteve um silêncio obsequioso por alguns minutos. Depois, com cara de quem dá aviso de ensebamento de capim de vivente, confessou:
--- Sei não, meus amigos! Ando preocupado. Ontem visitei a fazendo do capitão Sinfrônio, no caminho pra Bertioga. Pois no chiqueiro tava lá uma ruma de porco: mexe cu pra cá, mexe cu prá lá... E o pior : ainda vi três barrão espirrando, Ave Maria !
Os circunstantes acompanharam o raciocínio, mas não conseguiam entender a preocupação.
--- E o que é que tem isso, Serapião ? Mexe cu, barrão espirrando ? Que charada da peste é essa?
--- Vocês num entenderam não, bando de Zé Mané ? Isso é um sinal dos tempos...Não ouve rádio, não ? Tá dando uma doença feia lá pras banda do México que eu acho que é lá perto do Cococi. Comeu lingüiça, toucinho, já pegou! O cabra com a enfermidade pula na lama e morre espojando e falando:cochim-cochim-cochim. Dizem que é um tal de defluxo da bacurinha e acho , pelo que vi na fazenda de Sinfrônio, que ta chegando por aqui. Pelo sim, pelo não, a rodinha se desfez rapidamente, o povo se trancou em casa e só olha agora o mundo pelas gretas das portas. Pedro Magarefe que negocia com miúdos de porco teve que mudar o meio de vida. Bacurim, em Matozinho, tá vivendo mais que Matusalém e só morre gagá e de arteriosclerose.


J. Flávio Vieira

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