Prezadíssimos leitores, estamos mesmo vivendo o fim das eras. A considerar a falta de ética, a esculhambação reinante e o péssimo e duvidoso gosto da programação televisiva, o temível dia do juízo final aproxima-se celeremente.
Sobre esse precoce apocalipse, permitam-me contar uma experiência recente que tive.
No final da tarde de sábado, estava em Penaforte, tomando uma cervejinha e assistindo ao jogo entre Ceará e Vasco da Gama, depois de um dia de trabalho intenso, quando no intervalo da peleja futebolística foi veiculada uma chamada para a programação seguinte: um show de auditório apresentado pelos irmãos Suplicy, cuja atração seria uma pegadinha onde duas mulheres se beijavam em via pública, como que para provocar a reação dos transeuntes. Supla, com sua arrastada fala de débil mental, anunciava: Não percam. Vai ter duas minas se beijando...
Há um bom tempo, quase todos os canais de televisão veiculam quadros de pegadinha como principal atração, onde pessoas anônimas são vítimas aleatórias de uma espécie de trote e, quase sempre, humilhadas ou ridicularizadas publicamente. A tônica recorrente desses quadros é o mau gosto e, pior, o desprezo pela dignidade humana.
Pois bem, não sabia eu que naquela mesma noite seria vítima de uma pegadinha, a despeito de não ser transmitido ao vivo ou em vídeotape, o que não diminuiu em muito a humilhação sofrida.
Na minha infância, brincava-se muito de pegadinhas, algumas inofensivas e outras repletas de maldade. Inocentes eram aquelas em que acionávamos a campanhia de uma casa e evadíamos do local antes de sermos atendidos. As maldosas eram aquelas tipo lambuzar a ponta de uma varinha com cocô. A pegadinha, neste caso, consistia em solicitar, cordialmente, que um infeliz segurasse a varinha por um momento. Então, assim que o desditoso segurava a varinha, ela era puxada rapidamente, sujando o desavisado com o fétido excremento. Chamávamos essa “brincadeira” de pau-de-bosta.
Creio que não há muita diferença entre as pegadinhas do meu tempo de criança e as que são apresentadas pelas sensacionalistas emissoras de TV de agora, a não ser o fato de que estas dão um ibope danado. Aquelas, apenas satisfaziam o instinto de danação dos garotos peças-ruins que éramos.
Voltando a Penaforte, onde estive por todo o final de semana, cumprindo o duro ofício do magistério, atravessava a praça central da cidade quando avistei uma nota de dez reais no chão. Achei logo que se tratava de uma pegadinha ou outra armadilha. Juro que, a despeito do breve lapso que durou este momento de impasse, lembrei-me do episódio narrado pelo poeta Manoel Caboclo e transcrito por Rosilene Alves Melo na sua dissertação de mestrado Arcanos do Verso - trajetória da Tipografia São Francisco em Juazeiro do Norte (1926-1982).
O episódio deu-se no contexto da “limpeza” feita pelo caudilho Floro Bartolomeu para livrar a cidade de Juazeiro do Norte da criminalidade que aumentou consideravelmente na localidade após a chamada Sedição de 1914. Segundo a autora, “grande parte do exército mobilizado por Floro Bartolomeu era formado por criminosos que terminada a marcha contra a cidade de Fortaleza, retornaram a Juazeiro e deram início a uma onda de saques e crimes ”. Desta forma, continua a autora, “Floro Bartolomeu instaurou na cidade o terror, (...), executando publicamente os acusados de cometer algum delito, sem que as vítimas tivessem qualquer direito à defesa. A violência foi a estratégia utilizada por Floro Bartolomeu para se defender das acusações que lhe imputaram os deputados da Câmara Federal, que o responsabilizavam por transformar Juazeiro num reduto de banditismo. (...)Como exemplo da ‘maravilha’ em que Juazeiro se transformou após as execuções promovidas por Floro Bartolomeu, Manoel Caboclo rememora um episódio que o impressionou:
“Um dia, uma coisa interessante que eu não me esqueço. Eu era rapazinho e vinha mais minha mãe. Naquele tempo dinheiro era muito difícil. Fomos fazer a feira, nós comprando as coisas e eu trazendo. Eu vi uma nota de cinquenta mil réis no chão, assim. Aí eu digo:
“- Minha mãe, olha um dinheiro ali...
“Aí ela disse:
-Ô filho, não chegue perto não!
“Aí eu sai mais ela e fomos embora. O dinheiro tava lá. Quando foi no outro dia nós fomos para missa, bem cedinho na Matriz (...). Quando nós chegamos lá (...) o dinheiro estava no mesmo local, apenas tinha uma pedra em cima. Uma pessoa botou uma pedra em cima para o vento não levar. E o dinheiro estava lá e era um dia de feira.(...) Num teve uma pessoa que apanhasse porque podia ser uma armadilha”.
Mesmo percebendo uma tropinha de adolescentes postada na esquina, em frente, em visível estado de excitação, o que aumentou consideravelmente a possibilidade de ser a nota, aparentemente perdida, uma arapuca para pegar besta, - usei de um racionalismo extremo ao concluir cá comigo, os meus botões e os meus bolsos em penúria: se for uma armadilha, o máximo que incorrerei é fazer o papel de palhaço para esses idiotas que só tem possibilidade como esta para extravasarem sua mediocridade; se não, ganharei dez reais praticamente de graça, o que dará pra tomar quatro cervejas.
Portanto, arrisquei. Era uma pegadinha. E das antigas. A nota estava presa a um cordão e foi puxada, deixando-me curvado em plena praça pública. E humilhado sob a gargalhada geral dos idiotas postados na esquina, em frente.
Restou-me, tão somente, apressar o passo. Amanhã vou embora, pensei, sentindo o alívio de ser forasteiro em terra de jovens tão ociosos e zombeteiros.
Adeus terra da pegadinha, nunca mais me verás tu...
Meu camarada e meu irmão,
ResponderExcluircaso estivesse lá contigo
juro que pegaríamos a nota!
Imagino tua fúria.
Sei, nem tanto pela troça
dos putos mancebos.
Mas,sobretudo, pelo sonho desfeito das quatro cervejinhas.
Deixa estar.
Também vivo com sede.
Um forte abraço.
Belíssimas imagens e escrita.
Domingos, que pena
ResponderExcluirPorque hoje são quartas
E tantas medidas de farinha
Quando ainda faltam cervejas
para satisfazer essa sede centenária
Nem Brahma nem Bohêmia
Nem Bavária