quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O sequestro de um filme baiano

Revoada, longa-metragem baiano de José Umberto, quando na mesa de montagem, no Rio, por causa da repentina necessidade de seu autor ir a Salvador para ser operado de urgência, foi sequestrado pelo produtor e montado à sua revelia. Um atentato contra a liberdade de criação artística. Publico aqui uma mensagem de um antigo companheiro de José Umberto que, do exterior, acompanha os fatos macabros desse episódio triste do cinema baiano.
Caro André Setaro,
Este texto é a uma reação, uma resposta (desde o estrangeiro) ao seqüestro realizado por Rex Schindler do filme Revoada do cineasta baiano José Umberto Dias. Assim, escrevo-lhe sobre a minha relação com o cineasta e com a atividade artística baiana dentro do contexto econômico-político nacional.
Conheço José Umberto Dias desde 1968: éramos colegas do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia (quando esta ainda estava localizada no bairro de Nazaré) da Universidade Federal da Bahia (UFBa). Naquele tempo, a convite do diretor iniciante Zé Umberto e do roteirista Zé Carlos Menezes, tive uma pequena participação ("ponta") no seu primeiro curta metragem Perâmbulo.
Tempo depois, ainda que estivesse fortemente interessado em sociologia, teatro e cinema, e já tivesse participado de algumas experiências teatrais com relativo êxito (como ator na peça Rebelião do Novo Sol de Capinan, Tom Zé e Chico Assis; como ator e co-diretor do Gey Espinheira na obra teatral Os Justos de Albert Camus; como ator e músico da peça Rosa-Rosae do professor Nelson Araújo, como ator principal do super-8 O Rei do Cagaço do Edgard Navarro), continuava dedicado a música e a composição musical, sendo então, tocador de violão, participante de festivais de música popular, e estudante de teoria, ritmo e violoncelo nos Seminários de Música da UFBa.
Foi nesse período que Zé Umberto também me convidou para compor uma das músicas do seu primeiro longa metragem O Anjo Negro (1973): aceitei imediatamente e compus a música que, ambos (ele e eu) ficamos satisfeitos com o resultado fílmico-musical.
Embora nascido em Salvador, vivo atualmente nos USA. Aqui neste país, tenho sido professor de Língua, Literatura e Estudos Culturais em diversas universidades norte-americanas: University of Califórnia, San Diego; University of Minnesota, Washington University, University of Wisconsin. Apesar da distância da terra natal, procuro, dentro do possível, acompanhar as realizações artísticas (filme, música, literatura...) e seguir a discussão cultural no Brasil, na Bahia, além de aproveitar para continuar falando e escrevendo na língua portuguesa com os amigos brasileiros. Faz um ano, estive na Bahia para o lançamento do meu livro Memorial da Ilha e Outras Ficções em Salvador, Feira de Santana e Lençóis. Em Salvador, estive constantemente acompanhado e assistido por muitos amigos, mas sobretudo por dois queridos amigos-artistas: o cineasta Edgard Navarro (que escreveu uma generosa matéria para o jornal A Tarde sobre meu livro) e a artista plástica Norma Couto (criadora da capa do citado romance).
Mas voltando a minha relação com o cineasta Zé Umberto e o filme O Anjo Negro, ainda vivia em Salvador quando fiquei sabendo que embora o filme tivesse sido exibido em várias capitais do país, teve seu lançamento nacional prejudicado pela estrutura colonial do mercado devido à sistemática submissão dos interesses nacionais aos interesses do capital estrangeiro (sobretudo da indústria de entretenimento norte americana).Não era a primeira, nem a última vez que um filme brasileiro sério, realizado com muitas dificuldades materiais (dado a grande limitação financeira e material do setor cinematográfico) tivesse baixa assistência das pessoas, devido ao entreguista circuito exibidor brasileiro. Tampouco estas limitações eram reduzidas ao cinema: já era uma condição estrutural de todo processo de produção cultural e artística (literatura, música, artes plásticas...) brasileira, dentro do sistema capitalista, na sua vertente tupiniquim. Foi desde essa época que aprendemos que o Brasil não era, nem é, um país pobre; era e é sim, um país injusto, por isso colonizado e imperializado.Também nesta época aprendemos que um dos objetivos centrais da política cultural da ditadura militar brasileira era inviabilizar (através da censura, do seqüestro, da prisão e da eliminação física de intelectuais e artistas) a produção cultural da resistência brasileira (fosse ela modernista, nacionalista de esquerda ou socialista). O exílio de Glauber Rocha, realizador de Deus e o Diabo na Terra do Sol e de Terra em Transe, foi e é um dos mais significativos emblemas daquela miserável política.
Também nesse tempo aprendemos que um dos eixos centrais da política ditatorial consistia em neutralizar o crescimento do cinema nacional através do desenvolvimento tecno-burocrático do sistema televisivo (TV Globo e companhias) nacional para homogeneizar ideologicamente a mentalidade da sociedade brasileira por todo o território nacional, cooptando, simultaneamente, os tubarões, os delatores, os oportunistas, e os picaretas em geral dentro do setor.
A corrupção, a falta de transparência, a concentração de riqueza na mão de uma pequena minoria, o crescimento da disparidade econômica entre ricos e pobres, o aumento da violência no campo e cidade, foram e são as principais características antidemocráticas da sociedade brasileira que herdamos da ditadura militar; mas até hoje, não houve nenhuma punição para os militares responsáveis por toda essa desgraça social. A impunidade segue sendo a moeda corrente da nossa política nacional e local. (Para aqueles que ainda não notaram, mirem-se no exemplo do PT e do "nosso grande líder" o Sr. Lula da Silva, que atualmente anda abraçado com os senhores José Sarney e Fernando Collor, dois dos políticos mais degradados e corruptos da sociedade brasileira, ombro a ombro, com o ex-governador baiano, o finado Antonio Carlos Magalhães).
É dentro desse contexto histórico alucinante que me permito afirmar que o seqüestro do filme Revoada é muito mais do que um abuso de poder e da violência local contra o cineasta José Umberto ; é uma alegoria, e um sintoma da injustiça e da impunidade que devasta a sociedade brasileira contemporânea.Observando retrospectivamente a presença dos tubarões capitalistas ou governamentais nas revoltas águas baianas da produção artística local (até onde sei, os mais notórios dos ataques predatórios se manifestaram no setor do cinema: Rex Schindler contra Luiz Paulino em Barravento, Vivaldo Costa Lima contra Tuna Espinheira na Fundação do Pelourinho, e, mais recentemente Moisés Augusto contra Edgard Navarro em Eu me lembro, Rex Schindler contra José Umberto em Revoada) me solidarizo não só com José Umberto e o filme Revoada mas com todos os trabalhadores das artes em geral e do cinema nacional em particular, vitimados pela sistemática opressão e exploração do capital nacional e estrangeiro.Dado o anterior, tudo o que quero, concretamente, neste momento, deste texto, é pressionar para que o produtor Rex Schindler devolva ao diretor e roteirista José Umberto o material filmado de Revoada para que o diretor possa proceder a montagem e a edição do seu filme de acordo a sua concepção pessoal. É um direito inalienável e legítimo do autor baiano.Para isso, seguiremos resistindo a opressão do Sr. Rex Schindler, e lutando para que as autoridades baianas despertem da sua acomodação burocrática e tomem as rédeas neste assunto absurdo: consigam a devolução imediata do material filmado de Revoada ao seu legítimo autor: o roteirista e diretor José Umberto.
Atenciosamente,
Jorge Vital de Brito Moreira
A imagem mostra um momento de Revoada, com Jackson Costa e Edlo Mendes.

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