Não é o diploma médico, mas a qualidade humana, o decisivo."
(Carl Gustav Jung)
Para quem acredita em numerologia, em determinismo nominal , fatalismo e outras centopéias esotéricas, o noticiário da semana passada encheu-nos a mesa com um cardápio variado. Vejam só os nomes : Orozimbo Ruela de Oliveira Neto e Sinomar Ricardo, de uma cidade chamada de Ivinhema ! O encontro de tantas consoantes e vogais dissonantes, previa-se sem necessidade de oráculos, terminaria em descompasso e desafino. Não deu outra! Estes dois, médicos em Mato Grosso do Sul, protagonizaram uma cena de que nunca tive notícia nos meus trinta e três anos de exercício da Medicina. Sinomar, plantonista do dia, partejava a costureira Gislaine de Matos, quando um Orozimbo enfurecido invadiu o Centro Cirúrgico, sob pretexto de que a parturiente lhe pertencia e, após uma discussão reles e violenta, terminaram por se engalfinhar num embate físico digno de filmes de faroeste. Enquanto isso, Gislaine permanecia sem nenhuma assistência ao parto, culminando com a morte do bebê que se chamaria Mibsan ,numa tragédia que poderia ter saltado do teatro grego. Toda a briga envolvia a importância de pouco mais de cem reais que é o valor astronômico que o SUS paga ao profissional por um parto. Sinal dos tempos?
Esta cena parece ficção científica para toda uma trupe de médicos da minha geração e anteriores a ela. Formamo-nos com a idéia fixa da Medicina como um sacerdócio, o paciente posto nos altares e andores. O cliente , nos foi ensinado, não tem condição social, cor, raça, geografia, história, cidadania, bondade ou maldade no coração. Ele é apenas o paciente, a quem devemos tratar e buscar a cura com todos os instrumentos e conhecimentos científicos que tenhamos às mãos. Devemos ter o mesmo desvelo para com aquele que tem condições de pagar pelo tratamento quanto por aquele que nos agraciará apenas com o sorriso e o agradecimento. Operaremos com o mesmo cuidado o criminoso de alta periculosidade e sua vítima inocente, deixaremos para Deus e os juízes o ato de julgar. Sequer receberemos diretamente dos doentes o pagamento pelos serviços prestados, secretários ficam encarregados deste mister, afinal um consultório não é uma loja comercial ou um balcão de banco. Sempre existiram, ainda, fortes preceitos éticos que norteavam a convivência dos colegas, delimitando-se espaços e funções. Se não conseguimos uma relação humanística entre nós próprios, como o humanismo fluirá até o objeto maior da nossa profissão que é o paciente? Como se explicar, pois, a loucura estampada nos noticiários, na semana passada?
Permitam-me meter minha colher de pau neste alguidar. Infelizmente, o quadro que temos hoje no país, é bem diferente do exposto acima. O avanço científico dos últimos cem anos impulsionou a Medicina para horizontes jamais imaginados: transplantes, clonagem, fertilização in vitro, cirurgia robótica, diagnósticos sofisticados por imagem, medicamentos moderníssimos aumentaram a expectativa de vida de forma vertiginosa. Aos poucos, no entanto, o tecnocracismo invadiu nossa atividade e nos fomos afastando do humanismo. É como se fôssemos uma espécie de técnico em eletrônica. Esquecemos que o homem, objetivo da nossa arte, é uma máquina muito mais complexa do que um PC ou uma TV. Hoje , rimos ao ver o tratamento primário feito pelos médicos do início do Século XX, com suas ventosas, sangrias e cataplasmas. Eles, no entanto, estavam próximo ao coração dos seus clientes, conheciam suas ansiedades, angústias e apreensões, sabiam que por trás da gastrite existia o conflito, além do câncer sobrenadava uma alma. Percebo, claramente, que geração após geração, fomos perdendo o elo com o humanismo. E a ética, amigos, é uma ilha no mar do humanismo. Escolas médicas pululam por todos os recantos do país.Muitas sem qualquer qualidade. Formamos técnicos ótimos em muitos casos, mas não formamos médicos. A ética, hoje, é uma disciplina longínqua, distante e parece não ter nada a ver com nossa profissão. Ela, no entanto, é o cerne não só de nossa atividade, mas da sobrevivência do planeta.
Desde o ensino fundamental é moldada no seio da juventude uma concorrência terrível, uma competitividade sem freios. Parece até que treinamos Pit-Bulls. O companheiro do lado é apresentado como o inimigo, aquele que vai tomar o seu lugar ao sol e à sombra. Formamos soldados e não cidadãos. Um colega não ajuda ao outro, não lhe passa as lições, não lhe empresta mais o caderno. Ninguém avisa que vai haver um concurso, rasga sorrateiramente o edital colado no flanelógrafo para que o amigo não tome ciência e concorra. As turmas de faculdade dividem-se em grupinhos e cada um luta por si. Sequer as festas de final de curso contemplam todos os colegas. Preferem superproduções caríssimas com um pequeno número de ricos participantes, em detrimento de uma festa mais simples que pudesse contemplar a todos os formandos e seus familiares. Esta é a corrida de poucos vencedores e inúmeros perdedores. Ao vencedor o enfarte !
Orozimbo e Sinomar devem pois estar se sentindo injustiçados. A briga foi apenas mais uma batalha em busca do Shangri-lá e para isso foram formados. E nas batalhas sempre há baixas, neste caso foi apenas o Mibsan que tombou e a Gislaine que saiu ferida. Por que a sociedade os condena, se aprenderam todos os avanços da sua especialidade nos últimos congressos? Mibsan terá sido sacrificado para aplacar a fúria do Deus mais poderoso da atualidade: o consumo. Orozimbo e Sinomar nem sequer percebem que não apenas sacrificaram o bebê, mas feriram de morte a profissão para a qual deveriam ter sido formados. Nestes dias uma cadeira de Artes Marciais fará parte da grade curricular. Percebo, também, que estou ficando velho, pois sou ainda daqueles que acreditam que apesar de todo o desenvolvimento dos meios de diagnóstico e tratamento dos últimos tempos, a Medicina continua sendo não uma Ciência, mas uma Arte.
J. Flávio Vieira
Lamento pelo menino que morreu. Lamento pela pobre família.
ResponderExcluirE faço coro ao seu texto.
Abraço.
Abraço ao Darlan e grato pela paciência em ler o tesxto,
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