quinta-feira, 1 de julho de 2010

Una





Bem que o Conselheiro já nos havia antecipado: o Sertão vai virá mar ! Quem se deteve nas imagens dos noticiários televisivos da semana passada, descobriu que o visionário barbudo de Canudos tinha lá suas razões. Uma chuva inusitada banhou as cabeceiras do Rio Una, no Agreste pernambucano, e o fez inundar as cidades de Barreiros, Palmares, Cortês. Cortando como uma artéria pulsante o Agreste, de Oeste a Leste, deitando suas águas em São José da Coroa Grande, já na fronteira com Alagoas, o Una destruiu praticamente as cidades por onde passou. As imagens que se viram, pareciam arrancadas do Haiti, após o terremoto devastador. Quase uma centena de mortos e desaparecidos. Pessoas desesperadas, que já tinham tão pouco na vida, se punham a observar, sem planos, a terra dizimada, como Noé diante do dilúvio.
Este texto sai em meio à calamidade, arrancado da lama como um caranguejo. Talvez porque, como caririenses, sentimo-nos também pernambucanos e, depois, porque o Una, na sua fúria, atingiu uma cidadezinha que tem uma ligação umbilical com o Cariri : Água Preta, cujo nome talvez tenha sido profeticamente depreendido das barrentas águas do Rio Una. A cidadezinha ,hoje de pouco mais de trinta mil habitantes, até o final do Século XIX ,era mero distrito de Rio Formoso. A vila tem lá seu lado épico, foi o último reduto da Revolução Praeira e lá o Capitão Pedro Ivo se refugiou, após a derrota no Recife, e manteve uma guerrilha, até ser vencido definitivamente em 1848.
O que nos liga diretamente à Água Preta, no entanto, é um outro fato. Ali, na zona rural, nasceu em 1877, uma figura exponencial da história caririense : Manuel Soriano de Albuquerque. Brotou naquele oco de mundo, aquele que viria ser uma das figuras mais notáveis da intelectualidade nordestina. Soriano fez seus estudos preliminares em Olinda e Recife e ,em 1899, ali terminou o curso de direito. Fizera-se., então, tribuno respeitado e assíduo colaborador na imprensa pernambucana. Foi nesta época que os ágeis dedos do destino teceram os fios que atariam Soriano ao Crato. Ele se tornou amigo de um outro Manuel: o Belém de Figueiredo, filho do famoso Coronel Belém. Este precisava, justamente, de um substituto para o juiz Holanda Cavalcante. Sob a influência do amigo, Soriano foi nomeado, pelo Presidente Nogueira Acioly , juiz substituto desta cidade, aqui aportando, significativamente em janeiro de 1900, na aurora do novo Século.
O Crato nunca mais seria o mesmo. Soriano de Albuquerque , acostumado às noites recifenses, revolveu o município de seu mofo. Criou ,aqui , um dos Grupos seminais do Teatro Cearense ; “ Os Romeiros do Porvir”, onde foi dramaturgo, cenógrafo, diretor e ator. Nele estava inserida toda a intelectualidade cratense: Luiz Gonzaga, nosso primeiro fotógrafo e o introdutor dos primeiros rudimentos de cinema na região; Fantina Aires a primeira dama do teatro caririense; Miguel Lima Verde, um dos primeiros médicos do estado. Soriano fundou ainda o Colégio Leão XIII e os jornais : A Semana, A Cidade do Crato , Jornal do Cariri, Correio do Cariri, O Sul do Ceará e ainda a revista : Coração do Ceará, Em setembro de 1902, transferiu-se para Barbalha por conta das brigas políticas envolvendo os Coronéis Belém e Antonio Luiz. Para lá levou o Colégio Leão XIII e ali fundou a Sociedade Instrutiva José Marrocos e continuou seus trabalhos de dramaturgia. Em 1905 transferiu-se, definitivamente para Fortaleza, onde dirigiu uma das Seções da Revista do Ceará . Reiniciou, então, seus afazeres na área jurídica, tornando-se professor e fundador da Faculdade de Letras( 1913). Atuou prolificamente como crítico literário, ensaísta, jornalista, poeta, jurisconsulto, com um prestígio enorme em todo Nordeste. Não bastasse isso, Soriano mergulhou pioneiramente, numa nova área do conhecimento: A Sociologia, sendo o fundador da Revista Brasileira de Sociologia e um dos primeiros cientistas brasileiros a se dedicar à nova Ciência. Em 1912 foi eleito membro do Instituto do Ceará. Numa manhã de setembro de 1941, Soriano alçou vôo, placidamente, da sua cadeira de balanço. Tinha sessenta e quatro anos e vivia humildemente, plantara o seu tesouro à distância das traças e dos cupins: mais de 92 obras dos mais variados tons.
Soriano de Albuquerque era filho adotivo do Cariri. Casara com uma cratense, D. Júlia Milfont de Amorim, quando ela tinha apenas treze anos. Quem sabe terá sido a Chapada do Araripe a sua última visão no seu vôo de Ícaro? Se o Rio Una revolveu toda Água Preta nos dias atuais, nosso teatrólogo sacudiu, com força igual, todos os alicerces da nossa terra, num movimento sísmico diverso. Ao contrário do Una, empreendeu um hercúleo processo de construção e ergueu as sólidas paredes da nossa identidade cultural . Numa estranha geografia, o manso Rio Grangeiro tornou-se afluente do turbulento Rio Una.






J. Flávio Vieira

3 comentários:

  1. Zé, muito bom, bem urdido e fazendo o que é o necessário. Fatos isolados não existem. Quando vejo alguém dizendo que uma foto substitui um texto, acredito apenas na ocasião, pois a idéia de continuidade como no cinema é mais próxima da realidade. Como você faz com este texto.

    ResponderExcluir
  2. Eu já morei na Rua Soriano Albuquerque, aqui no Crato.
    Seria bem legal se os cidadãos e cidadãs soubessem a história das pessoas que dão nomes às ruas.

    A história de SORIANO contada aqui é muito digna.

    ResponderExcluir
  3. Abraço ao Zé do Vale e ao Darlan pela paciência em ler o texto sobre o Soriano, um dos pioneiros do teatro aqui no Cariri.

    ResponderExcluir