Em 3 de outubro, um domingo, os brasileiros acordaram cedo, votaram, decidiram democraticamente pelo segundo turno das eleições presidenciais e foram para a cama no século XXI. Mas acordaram no dia seguinte em plena Idade Média, com a religião e o aborto no centro do debate político. Como a eleição termina no dia 31, em pleno Halloween, nas redes sociais a candidata do PT, Dilma Rousseff, passou a ser tratada por seguidores de Jose Serra, do PSDB, como uma bruxa a quem será preciso queimar. O clima inquisitorial, patrocinado não só por evangélicos, como chegou a se publicar,
mas também por alas conservadoras da Igreja Católica, é estimulado pelos tucanos e democratas, que pretendem focar a campanha no tema.
Quando o Brasil foi dormir naquela noite, o aborto era uma questão séria de saúde pública. Realizado clandestinamente, é o responsável por 15% das mortes maternas no país, a quarta causa de óbito de mulheres durante a gestação. São realizados pelo Sistema Única de Saúde (SUS) mais de 180 mil curetagens por ano, grande parte delas causada por abortos malsucedidos. De acordo com uma pesquisa feita pela Universidade de Brasília, mesmo proibido por lei, uma em cada cinco brasileiras com menos de 40 anos expeliu do corpo um feto por vontade própria.
Ao acordar na segunda-feira, o brasileiro deparou-se com a notícia de que esse grave problema havia se transformado num trunfo para tentar mudar o resultado das eleições,
nas mãos de religiosos e político conservadores.
UMA TRAMA FOI URDIDA NOS SUBTERRÂNEOS DO CATOLICISMO MAIS ARCAICO PARA PREJUDICAR A CANDIDATA DILMA ROUSSEFF, retro-alimentada pelos adversários eleitorais. A própria mulher do candidato José Serra, Mônica, chegou a dizer a um evangélico, no Rio de Janeiro, em meados de setembro, que a petista “gosta de matar criancinhas”. Impossibilitados de atingir as classes mais baixas com algum halo de programa de governo, democratas e tucanos apelam para o aborto e para a religião em busca dos votos da classe C.
Em uma reunião de Serra com os governadores e senadores eleitos pelo PSDB em Brasília, foi flagrada pelos repórteres uma pilha de panfletos da arcaica Tradição, Família e Propriedade (TFP) a pregarem o voto contra Dilma Rousseff por ela ser a favor da “legalização” do aborto, entre outras questões.
Nas duas semanas anteriores à eleição e no próprio domingo da votação, uma carta assinada pelo bispo dom Nelson Westrupp, presidente da Regional Sul 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, foi distribuída nas portas das igrejas de São Paulo. Conclamava os eleitores a não votarem nos candidatos do PT.
Serra tem razões pessoais para deixar de apelar à condenação do aborto como arma eleitoral. Em 1998, quando Ministro da Saúde, foi ele quem assinou a norma que dava orientações sobre como o centro de saúde deveria proceder no atendimento ao aborto para vítimas de violência sexual, previsto na lei. Tecnicamente o procedimento foi correto, mas Serra foi alvo de condenação pública pelo CNBB, que pediu a revogação imediata da norma. Para quem sentiu na pele a pressão da Igreja, é no mínimo manifestação de oportunismo recorrer a tais expedientes.
Parece, porém, que a questão ética não incomoda o candidato tucano.
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