segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

“Gravidez masculina” – José Nilton Mariano Saraiva

Alguma vez você já parou pra pensar sobre o impacto demolidor e mortífero de um cruzado de direita na mandíbula, desferido por uma daquelas deformadas montanhas de músculos americanas, tipo Myke Tyson ou Evander Hollifield ??? Já se deu ao trabalho de sequer imaginar qual o potencial descomunal da força liberada por um daqueles “coices”, verdadeiras “patadas” eqüinas, aproveitando a “guarda baixa” do adversário ???
Pois bem, mesmo sem nunca tendo tido a experiência de subir num ringue (embora apreciador de um bom combate), passamos por algo que, imaginamos, deva ter alguma coisa a ver.
Oito anos se passaram (2003, até aqui) e, no entanto, parece que foi ontem.
Após rotineiros exames de sangue, um dos resultados ( PSA ) fugira - e muito - aos padrões culturalmente estabelecidos pela Medicina. Providenciada com urgência a competente biópsia, o “petardo” na cara (ou, se preferirem a linguagem boxeana, aquele golpe sujo, abaixo da linha de cintura), através de um diagnóstico apavorante: “temos um tumozinho maligno na próstata, de um milímetro, que necessita de cuidados especiais”, sentenciou o Doutor, frio, impassível, voz suave, mas segura, sem maiores cerimônias e sem aparentar qualquer surpresa ou sequer mover um músculo da face (como se fosse a coisa mais natural do mundo).
Pois foi assim, abruptamente, que tomamos conhecimento da nossa indesejada “gravidez masculina”, ou melhor, de que em nossas entranhas repousava um “ser vivo”, pulsante e... repulsivo.
E muito embora já estivéssemos um tanto quanto desconfiados com o número apresentado pelo exame, a verdade é que a bordoada foi grande, o golpe dolorido, o impacto demolidor, a dor profunda: fomos a nocaute técnico, literalmente. Tanto é que, dirigindo no trajeto de volta do consultório para casa, cerca de seis quilômetros, simplesmente ignoramos semáforos, limites de velocidade, sinalização esquerdo-direita, o escambau, tantas e tão copiosas eram as lágrimas a rolarem pela face. Mas, chegamos... e vivo.
Adeptos e absolutamente convictos da existência de um “ser superior”, mas um “milenar” descrente de santidades, papas, bispos, diáconos, padres e por aí vai, ao tempo em que um aliado de primeira hora da Igreja Católica em relação ao Padre Cícero Romão Batista (não passa de um grande charlatão), evidentemente que o caminho a seguir não poderia jamais contemplar a excrescência de incluir terços, promessas, figas, orações e rezas (ao contrário de muita gente, “cristão roxo”, que delas só se lembra em tais oportunidades).
Assim, após uma noite insone e reflexiva (se isso era possível naquele momento), a decisão preliminar: poupar os dois filhos (adolescentes), mas abrir o jogo para a esposa (em Fortaleza) e transmitir a notícia para pelo menos um dos membros da família (no Crato); pai e mãe, por motivos óbvios e em razão da idade avançada, nem pensar. E assim foi feito.
Ao contrário da gravidez feminina (onde “ele” é execrado e sequer mencionado) e como o nosso “fetozinho querido” media apenas “um milímetro”, de comum acordo com o Doutor chegamos à conclusão que a opção mais apropriada e recomendável de eliminá-lo seria através do temível “aborto”, via tratamento de choque (paradoxalmente menos invasivo): portanto, “radioterapia” nele, intensiva, maciça, durante ininterruptas trinta e sete seções diárias, de segunda à sexta (dois meses). Religiosamente. Toda manhã.
Durante o processo, dois momentos que marcaram indelevelmente: a) lá pelo meio do tratamento, como que para mostrar a fraqueza do ser humano, um brabo e caudaloso sangramento irrompeu, provocado pelo rompimento de uma artéria atingida pela radiação; haja sangue, expectativa e temor (a medicação prescrita, entretanto, incontinente debelou-o); e b) de partir o coração (numa cena comovente), testemunhar numa mesma sala dezenas de pessoas (políticos de alto coturno, empresários, faxineiras, socialites e por aí vai) repentinamente irmanadas por uma tragédia, tentando se ajudar uma às outras as mostrarem confiança, exercitar a solidariedade em toda a sua essência, extraírem otimismo de quem já se mostrava descrente, mesmo que para tanto tivessem, vez por outra, que recorrer ao uso de uma pitada de humor negro (mas sem nenhuma maldade), através da simplória frase: “onde é o teu” (tumor) ??? E haja detalhamentos (foi aí, por exemplo, que tomamos conhecimento que o ex-prefeito do Crato, Ossian Araripe, por lá houvera passado, meses antes, em tratamento, antes de morrer num incêndio em seu apartamento).
Fato é que já se passaram oito anos e os exames do PSA, antes trimestrais, hoje passaram a ser semestrais, com seus percentuais sempre na faixa tranqüilizadora do zero ponto alguma coisa, indicando que, mui provavelmente, vencemos, sim, o temido câncer (claro que há espaço para uma indesejável recidiva; é torcer para que não pinte no pedaço).
Evidentemente que quem passa por situação tão crítica jamais será o mesmo. A “coisa” marca profundamente, deixando seqüelas e cicatrizes inenarráveis, físicas e psicológicas. Assim, por mais precisa e cirúrgica que haja transcorrido a intervenção radioterápica, a demolidora radiação atingiu o entorno dos órgãos sexuais, limitando a prática da atividade sexual, posteriormente (agora, por exemplo, tanto com uma “ninfeta”, com uma “mulher da vida” ou com uma “miss mundo”, pra conseguir alguma coisa em termos de sexo só com o uso da pílula e se houver o imprescindível “estímulo-complementar” da parceira; e não adianta reclamar, estrebuchar, ficar zangado, porque você fica literalmente a “meio-pau” e tem mesmo é que adaptar-se).
De outra parte, por mais “cabeça” que você seja, por mais arejada que seja sua mente, por mais despreocupado que se pareça, sempre que pinta uma “dorzinha no pé da barriga”, uma simples pontada na região tratada, a tendência é se pensar que a “coisa” acordou, ta viva, ameaça voltar. Há que se controlar os nervos.
Alfim, um esclarecimento que reputamos necessário: como não conhecemos e não somos conhecidos pessoalmente por quase ninguém dos blogs que participamos (Cariricaturas e Cariricult), você, do outro lado da telinha, curioso, há de indagar: o que é que nós temos a ver com o drama do Mariano, pra ele vir com esse papo furado, com esse lero fúnebre, com essa conversa sinistra ???
É que entendemos ser preciso acabar de vez com esse preconceito idiota de que alguém que tem ou teve câncer se acha condenado a viver no isolamento completo, tornar-se um pária social, ser tratado como um leproso incomunicável e evitado a todo custo, além de ter que “guardar segredo” para o resto da vida e mais algum tempo. Como se fosse algo degradante, contagioso, imoral e vergonhoso. E nada melhor para debelar e evitar isso do que exercitar o jogo aberto, limpo, transparente, sem frescuras ou tergiversações, abrindo a mente e o coração (mesmo que para desconhecidos).
Nem que isso implique no iminente risco de, durante a Exposição do Crato, repentinamente alguém mais liberal e expansivo venha a cumprimentá-lo com a exótica saudação: “diga lá, seu canceroso brocha”.
Vida que segue...

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