Padre Medeiros assumiu a paróquia de Serrinha dos Nicodemos, quando do histórico
desmembramento da de Matozinho. Consta que o então pároco matozense,
já não conseguia dar conta de tantas ovelhas espalhadas por distritos e
vilas circunvizinhas. O sacerdote alemão Norsinger , conhecido por todos como
“Nó Cego”, já carregava nos ombros e pernas o fardo de mais de setenta décadas.
Contam que, por conta da desassistência, o rebanho viu-se na necessidade de
procurar Igrejas Evangélicas que começaram pouco a pouco a se disseminar
na região. A assimilação do novo credo
não era fácil, pois desbancar Padre Cícero , Frei Damião e Nossa Senhora dos
seu altares, era heresia para ser resolvida apenas por uma nova Inquisição ou
uma outra Cruzada. Os pastores precisaram, pois, sabiamente ou sabidamente, minorar um pouco o discurso de uma divindade
centralizada, sem advogados e secretários, para poder conquistar um rebanho
disperso. Mas pouco a pouco , com o passar dos cultos, precisaram introduzir os
princípios básicos da sua teologia, inclusive uma outra medida muito impopular
: o dízimo.
A
chegada de Pe Medeiros em Serrinha, assim, trouxe uma incontida alegria à
população. Embora idoso, ou por isso mesmo, o pároco transpirava virtude. Como todo santo mortal, no entanto,
escorregava em um ou outro pecado capital, que ninguém é de ferro. A luxúria já
não trouxera à Serrinha. Avareza, soberba, ira e vaidade, se um dia cultivara,
tinham ficado pelo caminho entre Serrinha e a Capital . Restavam apenas a preguiça , um pouco por conta das décadas
que se foram sucedendo e, principalmente, aquele que mais contribuiria para (
se não amainassem as Leis de São Tomaz de Aquino) levá-lo , um dia , às
labaredas do Inferno : A Gula.
Medeiros
, pesadão, com uma barriga digna de um Rei Momo, comia como se previsse uma
nova seca de 77. Invariavelmente, mandava cozinhar todo dia: um quilo de arroz,
um outro de feijão e uns dois de carne e depositando a ruma de comida num
aribé, comia como se estivesse previsto para logo mais o apocalipse dos Maias. Rosário,
sua empregada, trazida na bagagem da
capital, fazia ainda acompanhar um vinhozinho para desentalar o gogó do nosso
padre. As línguas maldosas de Serrinha diziam que o sacerdote durante o dia
passava de comida e vinho e, de noite, religiosamente, debulhava Rosário. A fama de esgalamido era tamanha que se criou
até uma expressão típica de Serrinha e redondezas. Neguinho terminava uma lauta
refeição, esfregava a pança, arrotava e já , automaticamente , soltava a
catilinária:
---
Menino, comi que só Padre Medeiros !
O
padre danava-se com esta história:
--“Comem
que só um cavalo batizado e vem com esta conversa de Padre Medeiros! Se eu
pegar o engraçadinho dizendo uma marmota dessas, eu excomungo !”
E
eram muitas as potocas envolvendo nosso Medeiros e suas peripécias à mesa.
Segundo o povaréu, numa das viagens à capital, pernoitou em uma vilazinha : “ Marmeleiro
de Dentro”. Lá a única pousada existente era o “Café de Dona Loló”, uma senhora
simpática e extremamente religiosa e que ficou pois felicíssima com o visitante
ilustre. No jantar, D. Loló ficou impressionada com a voracidade do Padre:
enrabou uma buchada, uma dobradinha, uns pedaços generosos de lingüiça, umas
costelas de leitão e um porco na rola, junto com uma garrafa de vinho São
Francisco, demonstrando, por fim, a
todos sua devoção. Terminado o lautíssimo jantar, atravessou o corpão numa
rede, desmaiou de sono e começou a roncar desesperadamente, igualzinho ao
barrão que acabara de degustar. Dir-se-ia um trator subindo uma ladeira, ou um
motosserra derrubando um jequitibá. D. Loló,
diante daquele barulho ensurdecedor, lembrando ainda da montanha de
comida pesada engolida pelo hóspede, começou a se preocupar:
---“Meu Deus,
valei-me, o padre tá passando mal, o
Padre tá morrendo”.
Resolveu,
então, tomar uma atitude salvadora. Aproximou-se da rede, balançou-a prá lá e
prá cá, com força, até despertar o religioso. Apreensiva perguntou-lhe:
---
Seu padre, o Senhor tá bem? Tá passando mal? Quer tomar um chá?
Medeiros
pareceu recuperar-se do pesadelo ante a auspiciosa notícia, aceitou o chá, mas impôs condições:
---
Quero, D. Loló, mas só se for com umas bolachas “cheme craque”!
De
outra feita, num casamento que realizou , foi à festa e comeu como só Padre
Medeiros ou um elefante seriam capazes. Terminado o almoço, ficou entalado e começou a suar em bicas como
se estivesse tirando espírito em Terreiro. Os convivas acorreram ,
interrogando-lhe se não preferiria botar o dedo na goela para vomitar e, assim,
se aliviar. O Padre justificou a negativa:
---
Meu filho, se coubesse ainda um dedo no gogó, eu comia era uma banana !
Semana
passada , Medeiros numa visita de desobriga, chegou numa casa humilde da zona
rural. A dona, uma senhora humílima,
feliz com a ilustre e rara presença, convidou-a para almoçar. Nem imaginava a
bronca em que se metia, com o risco pouco calculado de deixar toda a família a
ver navios ou estrelinhas.
---
É um mucunzá, seu padre, o Senhor aceita um pratinho?
---
Aceito, sim, minha filha, nem gosto muito de comer, estou fazendo dieta, mas
veja lá uma tirrintazinha, dessas mais fundas, viu?
Rápido
, Medeiros sorveu a primeira tigela e a pobre Senhora, a seu pedido, começou a
encoivarar pratos e mais pratos. Na altura do sétimo ou oitavo, a dona da casa,
já observando o fundo do panelão, perguntou:
---
Seu padre, o senhor gosta de Muncunzá, como um desvalido, né?
Medeiros
arrematou:
---
Gosto não, minha senhora ! Eu odeio muncunzá, mas coisa
ruim a gente deve acabar logo, né? Vai ver a Senhora oferece a uma pessoa
estranha, ela é capaz de arreparar!
J. Flávio Vieira
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