TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Tirrintas & Aribés


Padre Medeiros assumiu a paróquia de  Serrinha dos Nicodemos, quando do histórico desmembramento da de Matozinho. Consta que o então pároco  matozense,  já não conseguia dar conta de tantas ovelhas espalhadas por distritos e vilas circunvizinhas. O sacerdote alemão Norsinger , conhecido por todos como “Nó Cego”, já carregava nos ombros e pernas o fardo de mais de setenta décadas. Contam que, por conta da desassistência, o rebanho viu-se na necessidade de procurar  Igrejas Evangélicas  que começaram pouco a pouco a se disseminar na região.  A assimilação do novo credo não era fácil, pois desbancar Padre Cícero , Frei Damião e Nossa Senhora dos seu altares, era heresia para ser resolvida apenas por uma nova Inquisição ou uma outra Cruzada. Os pastores precisaram, pois, sabiamente ou sabidamente,  minorar um pouco o discurso de uma divindade centralizada, sem advogados e secretários, para poder conquistar um rebanho disperso. Mas pouco a pouco , com o passar dos cultos, precisaram introduzir os princípios básicos da sua teologia, inclusive uma outra medida muito impopular : o dízimo.
                                               A chegada de Pe Medeiros em Serrinha, assim, trouxe uma incontida alegria à população. Embora idoso, ou por isso mesmo, o pároco transpirava   virtude. Como todo santo mortal, no entanto, escorregava em um ou outro pecado capital, que ninguém é de ferro. A luxúria já não trouxera à Serrinha. Avareza, soberba, ira e vaidade, se um dia cultivara, tinham ficado pelo caminho entre Serrinha e a Capital . Restavam apenas  a preguiça , um pouco por conta das décadas que se foram sucedendo e, principalmente, aquele que mais contribuiria para ( se não amainassem as Leis de São Tomaz de Aquino) levá-lo , um dia , às labaredas do Inferno : A Gula.
                                               Medeiros , pesadão, com uma barriga digna de um Rei Momo, comia como se previsse uma nova seca de 77. Invariavelmente, mandava cozinhar todo dia: um quilo de arroz, um outro de feijão e uns dois de carne e depositando a ruma de comida num aribé, comia como se estivesse previsto para logo mais o apocalipse dos Maias. Rosário, sua empregada,  trazida na bagagem da capital, fazia ainda acompanhar um vinhozinho para desentalar o gogó do nosso padre. As línguas maldosas de Serrinha diziam que o sacerdote durante o dia passava de comida e vinho e, de noite, religiosamente, debulhava Rosário.  A fama de esgalamido era tamanha que se criou até uma expressão típica de Serrinha e redondezas. Neguinho terminava uma lauta refeição, esfregava a pança, arrotava e já , automaticamente , soltava a catilinária:
                                               --- Menino, comi que só Padre Medeiros !
                                               O padre danava-se com esta história:
                                               --“Comem que só um cavalo batizado e vem com esta conversa de Padre Medeiros! Se eu pegar o engraçadinho dizendo uma marmota dessas, eu excomungo !”
                                               E eram muitas as potocas envolvendo nosso Medeiros e suas peripécias à mesa. Segundo o povaréu, numa  das viagens  à capital, pernoitou em uma vilazinha : “ Marmeleiro de Dentro”. Lá a única pousada existente era o “Café de Dona Loló”, uma senhora simpática e extremamente religiosa e que ficou pois felicíssima com o visitante ilustre. No jantar, D. Loló ficou impressionada com a voracidade do Padre: enrabou uma buchada, uma dobradinha, uns pedaços generosos de lingüiça, umas costelas de leitão e um porco na rola, junto com uma garrafa de vinho São Francisco, demonstrando, por fim,  a todos sua devoção. Terminado o lautíssimo jantar, atravessou o corpão numa rede, desmaiou de sono e começou a roncar desesperadamente, igualzinho ao barrão que acabara de degustar. Dir-se-ia um trator subindo uma ladeira, ou um motosserra derrubando um jequitibá. D. Loló,  diante daquele barulho ensurdecedor, lembrando ainda da montanha de comida pesada engolida pelo hóspede, começou a se preocupar:
                                   ---“Meu Deus, valei-me,  o padre tá passando mal, o Padre tá morrendo”.
                                   Resolveu, então, tomar uma atitude salvadora. Aproximou-se da rede, balançou-a prá lá e prá cá, com força, até despertar o religioso. Apreensiva perguntou-lhe:
                                   --- Seu padre, o Senhor tá bem? Tá passando mal? Quer tomar um chá?
                                   Medeiros pareceu recuperar-se do pesadelo ante a auspiciosa notícia,  aceitou o chá, mas impôs condições:
                                   --- Quero, D. Loló, mas só se for com umas bolachas “cheme craque”!
                                   De outra feita, num casamento que realizou , foi à festa e comeu como só Padre Medeiros ou um elefante seriam capazes. Terminado o almoço,  ficou entalado e começou a suar em bicas como se estivesse tirando espírito em Terreiro. Os convivas acorreram , interrogando-lhe se não preferiria botar o dedo na goela para vomitar e, assim, se aliviar. O Padre justificou a negativa:
                                   --- Meu filho, se coubesse ainda um dedo no gogó, eu comia era uma banana !
                                   Semana passada , Medeiros numa visita de desobriga, chegou numa casa humilde da zona rural.  A dona, uma senhora humílima, feliz com a ilustre e rara presença, convidou-a para almoçar. Nem imaginava a bronca em que se metia, com o risco pouco calculado de deixar toda a família a ver navios ou estrelinhas.
                                   --- É um mucunzá, seu padre, o Senhor aceita um pratinho?
                                   --- Aceito, sim, minha filha, nem gosto muito de comer, estou fazendo dieta, mas veja lá uma tirrintazinha, dessas mais fundas, viu?
                                   Rápido , Medeiros sorveu a primeira tigela e a pobre Senhora, a seu pedido, começou a encoivarar pratos e mais pratos. Na altura do sétimo ou oitavo, a dona da casa, já observando o fundo do panelão, perguntou:
                                   --- Seu padre, o senhor gosta de Muncunzá, como um desvalido, né?
                                   Medeiros arrematou:
                                   --- Gosto não, minha senhora ! Eu odeio muncunzá, mas   coisa ruim a gente deve acabar logo, né? Vai ver a Senhora oferece a uma pessoa estranha, ela é capaz de arreparar!

J. Flávio Vieira

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