quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A Faca e a Bainha



O Coronel Sinfrônio Arnaud era sério que só um touro mijando. Homem de uma só palavra, volta-seca e positivo como um pólo de bateria, sempre foi respeitadíssimo em Matozinho. Trazia aquela sistemática do berço. Ainda menino, entrou na cozinha de casa e, desavisadamente, encostou o cotovelo numa caçarola quente, queimando-o.  A mãe saltou de lá com um “bem-feito ! Naõ sei o que é que quer menino em cozinha!” . O menino Arnaud , ainda com rosto de sofrimento, rebateu : “Nem eu !” Já beirava os oitenta e, desde aquele dia, nunca mais na vida entrou numa cozinha. Fazia muitas vezes os percursos mais oblíquos, mas mantinha a decisão tomada na infância. Quando perguntavam a razão de aquela opinião perdurar por tantos anos, dizia :
                                               --- Não é nada,  não! Me dá sobrosso !
                                               Arnaud pôs no mundo uma récua de treze filhos e, como sempre acontece, alguns terminaram lhe trazendo dor de cabeça. Viviam em tempos menos rígidos, onde as amarras da moralidade já tinham se esfacelado e terminaram por colidir com as leis inflexíveis do pai. Sinfrônio fechou-se como pequi verde , ignorou-os  e, pior,  fingiu que não existiam. Não mais quis saber deles, sequer mencionava seus nomes em conversas informais e quando alguém os citava , perguntava :
                                               --- Quem ? Afrodízio ? Isabel?  Conheço , não senhor ! É daqui de Matozinho ?
                                               Um compadre seu, preocupou-se. Arnaud , por último, já negava a existência de cinco filhos. Dizia, sempre: “Cortei um dedo ! Não quero mais saber!” O compadre procurou o amigo e, usando da amizade que os unia há tantos anos, pediu a Sinfrônio que abrandasse o coração, reconsiderasse, não havia condições de afastar-se de tantos rebentos como ele vinha fazendo,  Cinco dedos cortados ! Pediu para servir de intermediário na reaproximação, os tempos eram outros e filho é assim mesmo , um criatório difícil e sem futuro. O Coronel, no entanto, deu o maior pulo:
                                               --- Não sei que loucura é essa que você tá falando, compadre. Eu só tenho oito filhos, não sei quem são esses outros aí,  não ! Eu já tô conformado mesmo, de tanto arrancar dedo, vou terminar cotó !
                                               Homem vivido, com um Código de Ética tão rígido, Sinfrônio terminou por se tornar uma espécie de conselheiro das novas gerações. Qualquer emboança em Matozinho e cercanias,  terminavam batendo à porta do Coronel para pedir sua abalizada opinião. Os interessados geralmente faziam um minucioso relato da sinuca de bico por que estavam passando e , logo depois, vinham as questões inevitáveis : Mato ou não mato ? Caso ou não caso ? Capo ou não capo ? 
                                               Pois bem, naquele dia, ainda cedinho, bateu à porta de Sinfrônio, um tal de Bartolomeu Calangro, vindo de Bertioga. Apeou-se, gritou um “ô de casa” característico e aguardou  a vinda da velha empregada da casa. Solicitada a audiência, foi endereçado aos fundos  , onde  encontrou o Coronel sentado, fazendo palitos de marmeleiro. Identificou-se e, então, desfiou seu problema :
                                               --- Coronel, vim aqui pedir sua opinião num caso chato que me aconteceu. Tenho uma filha chamada Filismina , tá com uns vinte anos, naquela idade agoniada que fica parecendo rolinha em galho de jurema, saltando de um lado pro outro com medo de tiro de espingarda.  Pois bem , caiu de namoro com um cabra sem futuro lá de Bertioga, desses que vivem com um violão embaixo do braço e um disco de Roberto Carlos debaixo do outro, prá cima e prá baixo. Pressionei de um lado, a mãe arrochou do outro, mas de nada adiantou: aí é que o namoro pegou fogo. Ontem vieram me contar que o safado ofendeu ela. Ela cresceu os peitos, anda vomitando pelos cantos, acho que tá buchuda. Ele diz que quer casar. Resolvi matar o sem-vergonha e lavar a honra da casa. Mas antes, resolvi vir falar com o senhor ! Me diga aí, eu num tô certo ?
                                               Sinfrônio ouviu com atenção de psicanalista o relato de Bartolomeu. Com tanto desmantelo mundo afora, vinha ficando especialista, nos últimos anos, na especialidade de descabaçamento de donzela. Ao invés de emitir a opinião abalizada, estranhamente, o Coronel voltou-se para o cliente e perguntou:
                                               --- Bartolomeu, você tem uma faca aí ?
                                               Calangro estranhou, mas , que jeito ?  Arrastou do vazio uma lambedeira de doze polegadas e estirou na direção de Arnaud:
                                               --- Tenho, sim ! Taqui, coronel !
                                               Sinfrônio desembainhou a jardineira , tomou a bainha nas mãos e devolveu a facona a Bartolomeu.
                                               --- Agora, Bartolomeu, eu quero que você embainhe essa faca aí nessa bainha que está aqui na minha mão.
                                               Calangro não entendeu nada. Imaginou que o coronel estava tresvariando. Mesmo assim seguiu sua ordem. Levou a faca até  a bainha que estava na mão do coronel, só que à medida que aproximava a lâmina, Sinfrônio mudava subitamente a posição da bainha, ora pra baixo, ora pra cima, ora de lado. Ficaram nessa luta por uns cinco minutos, até que Bartolomeu desistiu:
                                               --- Não Coronel, desse jeito não tem que embainhe faca não, o senhor num para num canto, é só mexendo a bainha pra lá e pra cá...
                                               Sinfrônio, então, matou uma charada , até então insolúvel :
                                               --- Tá vendo , Bartolomeu ? Se a bainha não quiser,  a faca não entra! Filismina gostou do movimento, ficou paradinha danada !  E você quer fazer uma besteira dessas  ? Mata o pai do seu neto, vai preso, a família vai ficar desamparada e o pior de tudo, agora que a bainha de Filismina tá acostumadinha, num pode viver sem a faca , não, homem de Deus ! Sem o  noivo não vão faltar outras facas, facões, canivetes e quicés...

J. Flávio Vieira

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