O
Coronel Sinfrônio Arnaud era sério que só um touro mijando. Homem de uma só
palavra, volta-seca e positivo como um pólo de bateria, sempre foi
respeitadíssimo em Matozinho. Trazia aquela sistemática do berço. Ainda menino,
entrou na cozinha de casa e, desavisadamente, encostou o cotovelo numa caçarola
quente, queimando-o. A mãe saltou de lá
com um “bem-feito ! Naõ sei o que é que quer menino em cozinha!” . O menino
Arnaud , ainda com rosto de sofrimento, rebateu : “Nem eu !” Já beirava os
oitenta e, desde aquele dia, nunca mais na vida entrou numa cozinha. Fazia
muitas vezes os percursos mais oblíquos, mas mantinha a decisão tomada na
infância. Quando perguntavam a razão de aquela opinião perdurar por tantos
anos, dizia :
---
Não é nada, não! Me dá sobrosso !
Arnaud
pôs no mundo uma récua de treze filhos e, como sempre acontece, alguns
terminaram lhe trazendo dor de cabeça. Viviam em tempos menos rígidos, onde as
amarras da moralidade já tinham se esfacelado e terminaram por colidir com as
leis inflexíveis do pai. Sinfrônio fechou-se como pequi verde , ignorou-os e, pior, fingiu que não existiam. Não mais quis saber
deles, sequer mencionava seus nomes em conversas informais e quando alguém os
citava , perguntava :
---
Quem ? Afrodízio ? Isabel? Conheço , não
senhor ! É daqui de Matozinho ?
Um
compadre seu, preocupou-se. Arnaud , por último, já negava a existência de
cinco filhos. Dizia, sempre: “Cortei um dedo ! Não quero mais saber!” O
compadre procurou o amigo e, usando da amizade que os unia há tantos anos,
pediu a Sinfrônio que abrandasse o coração, reconsiderasse, não havia condições
de afastar-se de tantos rebentos como ele vinha fazendo, Cinco dedos cortados ! Pediu para servir de
intermediário na reaproximação, os tempos eram outros e filho é assim mesmo ,
um criatório difícil e sem futuro. O Coronel, no entanto, deu o maior pulo:
---
Não sei que loucura é essa que você tá falando, compadre. Eu só tenho oito
filhos, não sei quem são esses outros aí,
não ! Eu já tô conformado mesmo, de tanto arrancar dedo, vou terminar
cotó !
Homem
vivido, com um Código de Ética tão rígido, Sinfrônio terminou por se tornar uma
espécie de conselheiro das novas gerações. Qualquer emboança em Matozinho e cercanias, terminavam batendo à porta do Coronel para
pedir sua abalizada opinião. Os interessados geralmente faziam um minucioso
relato da sinuca de bico por que estavam passando e , logo depois, vinham as
questões inevitáveis : Mato ou não mato ? Caso ou não caso ? Capo ou não capo
?
Pois
bem, naquele dia, ainda cedinho, bateu à porta de Sinfrônio, um tal de
Bartolomeu Calangro, vindo de Bertioga. Apeou-se, gritou um “ô de casa”
característico e aguardou a vinda da
velha empregada da casa. Solicitada a audiência, foi endereçado aos fundos , onde
encontrou o Coronel sentado, fazendo palitos de marmeleiro.
Identificou-se e, então, desfiou seu problema :
---
Coronel, vim aqui pedir sua opinião num caso chato que me aconteceu. Tenho uma
filha chamada Filismina , tá com uns vinte anos, naquela idade agoniada que
fica parecendo rolinha em galho de jurema, saltando de um lado pro outro com
medo de tiro de espingarda. Pois bem ,
caiu de namoro com um cabra sem futuro lá de Bertioga, desses que vivem com um
violão embaixo do braço e um disco de Roberto Carlos debaixo do outro, prá cima
e prá baixo. Pressionei de um lado, a mãe arrochou do outro, mas de nada
adiantou: aí é que o namoro pegou fogo. Ontem vieram me contar que o safado
ofendeu ela. Ela cresceu os peitos, anda vomitando pelos cantos, acho que tá
buchuda. Ele diz que quer casar. Resolvi matar o sem-vergonha e lavar a honra
da casa. Mas antes, resolvi vir falar com o senhor ! Me diga aí, eu num tô
certo ?
Sinfrônio
ouviu com atenção de psicanalista o relato de Bartolomeu. Com tanto desmantelo
mundo afora, vinha ficando especialista, nos últimos anos, na especialidade de
descabaçamento de donzela. Ao invés de emitir a opinião abalizada,
estranhamente, o Coronel voltou-se para o cliente e perguntou:
---
Bartolomeu, você tem uma faca aí ?
Calangro
estranhou, mas , que jeito ? Arrastou do
vazio uma lambedeira de doze polegadas e estirou na direção de Arnaud:
---
Tenho, sim ! Taqui, coronel !
Sinfrônio
desembainhou a jardineira , tomou a bainha nas mãos e devolveu a facona a
Bartolomeu.
---
Agora, Bartolomeu, eu quero que você embainhe essa faca aí nessa bainha que
está aqui na minha mão.
Calangro
não entendeu nada. Imaginou que o coronel estava tresvariando. Mesmo assim
seguiu sua ordem. Levou a faca até a
bainha que estava na mão do coronel, só que à medida que aproximava a lâmina,
Sinfrônio mudava subitamente a posição da bainha, ora pra baixo, ora pra cima,
ora de lado. Ficaram nessa luta por uns cinco minutos, até que Bartolomeu
desistiu:
---
Não Coronel, desse jeito não tem que embainhe faca não, o senhor num para num
canto, é só mexendo a bainha pra lá e pra cá...
Sinfrônio,
então, matou uma charada , até então insolúvel :
---
Tá vendo , Bartolomeu ? Se a bainha não quiser,
a faca não entra! Filismina gostou do movimento, ficou paradinha danada
! E você quer fazer uma besteira
dessas ? Mata o pai do seu neto, vai
preso, a família vai ficar desamparada e o pior de tudo, agora que a bainha de
Filismina tá acostumadinha, num pode viver sem a faca , não, homem de Deus !
Sem o noivo não vão faltar outras facas,
facões, canivetes e quicés...
J. Flávio Vieira
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