segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Bateia


Acabo de me reunir , aqui no Recife, com os colegas de Medicina, comemorando os trinta e cinco anos de formatura. Como sempre acontece, há companheiros mais próximos e aqueles que tínhamos visto pela última vez na colação de grau. Há sempre alguns com quem sempre tivemos uma maior empatia e outros que privaram menos da nossa afeição. A vida louca e breve nos dispersou pelo mundo, cada um em busca do seu sonho e das suas realizações pessoais. Passados os anos, pomo-nos a perceber que a história é mais importante que a geografia e vemo-nos imantados pela imperiosa necessidade de buscar testemunhas de uma época áurea da nossa existência, onde o sol brilhava mais intensamente, onde a felicidade colhia-se nos galhos mais baixos das árvores, onde a longa estrada à frente impelia-nos a colher os muitos frutos pendentes e à aventura chapeuzinhovermelhiana de buscar o caminho da floresta ao invés das pacíficas veredas do rio. Muitas e muitas luas depois, embora enveredando por trilhas diversas, terminamos por perceber que , à frente , as aparentes paralelas   novamente se cruzam e que, sem que tivéssemos nos dado conta, percorríamos todos, um mesmo trajeto. Ei-nos , pois, sobreviventes de muitas guerras, contabilizando os poucos espólios de tantas batalhas, descobrindo ,atônitos, que o Shangri-lá não existe como fim, apenas como meio.  E mais :  que o pote de ouro  a que todos almejávamos não estava abaixo do arco-íris,  mas nas retinas de cada um dos  caçadores de esmeraldas e que era tão-sòmente a indefectível beleza multicolorida do próprio  arco-íris.
                                               O tempo, este ourives incansável, lapidou as brutas rochas que tinha às mãos. A bateia dos anos peneirou o cascalho dos ressentimentos, a ganga bruta das frustrações, os seixos imprestáveis  das paixões menores. Até os sulcos inevitáveis das nossas feridas de guerra parecem ter ganho uma luminescência especial, como um fogo fátuo dos nossos muitos sepultamentos interiores.  O inventário final do garimpo : uma pepita brilhante e imaecível : A vida vivida e a ser vivida !
                                               Folheando o antigo livro de chamadas, bate-nos o amargo gosto da impermanência:  contatamos que já muitos não respondem com o seu : Presente ! Os que continuam na caminhada descobrem uma nova responsabilidade: necessitam viver para si mesmos e por aqueles que acabaram, prematuramente, caindo à margem do caminho. Fechado o balanço de tantos sonhos percebemos que a memória de todo este milagre indefinível depende das testemunhares oculares deste sonho : nossos colegas de travessia.  Sem os muitos viandantes, a estrada não existiria: a única prova material da magia da minha existência  está na lembrança dos meus companheiros. Sem eles minha vida não existiria; sem a minha memória,  a existência de todos eles teria sido um mero efeito especial de um filme b.
                                               Celebrar a intersecção  das muitas retas que um dia pareciam paralelas remete-nos aos insondáveis mistérios da nossa geometria existencial. Parodiando Carl Sagan não parece ter sido mera coincidência que diante da incomensurável dimensão do universo, da vastidão impalpável do tempo, todos nós tenhamos divido juntos a mesma época, o mesmo chão e os mesmos sonhos.  

J. Flávio Vieira

2 comentários:

  1. Zé Flávio: ao pegar a linha de um coleguismo universitário vai esticando-a ao infinito onde as paralelas se encontram. E parece descobrir que as retas não existem, apenas seriam marcações fictícias do planisfério universal onde todos nos encontramos. Essa é a natureza deste texto: iguais não são os colegas do Zé, mas o universo humano neste pulsar que se locomove, age, tonteia-se, torna-se pedante e egoísta, mas afinal retorna à sua humanidade mesmo que é as últimas ações visem congelar o incongelável direito de sempre se dar bem. Zé, diante das austeridades europeias, da quebra de regras e da farinha pouca meu pirão pinheiro, nos devolve a humanidade que ainda depende e se acomoda neste solitário planeta.

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  2. Abraço ao grande Dedé que já deve ter suas incontáveis comemorações na vida . Sentimo-nos todos como sobreviventes de alguma catástrofe intangível e isso, por fim, é o que apara as arestas e termina por nos banhar de alguma humanidade.

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