segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Ceia de Natal - José do Vale Pinheiro Feitosa


Surgindo solitárias no indescrito nada desta folha. Palavras eleitas, porém não lidas por ninguém. É noite da véspera de Natal quando a vocalização e a audição tomam conta da prática de todos. E inútil nos inscrevemos sem que os olhos nos selecionem, a compreensão nos agasalhe ao nascer, a emoção se provoque por nossa causa e a lembrança se prolongue além dos olhos que poderiam nos ler.

Todos em volta da Ceia de Natal. A celebração dos corpos deles através do sabor que os alimenta, dos graus que os embriaga, dos presentes que se trocam como doação e recepção de alegrias subjetivas traduzidas por objetos da materialidade fabril. Eis o momento da união familiar. Essa é a causa da nossa solidão. Quando estão lá na sala e permanecemos sujeitos ocultos da tela de computador não iluminada.

Sabemos quantas regras nos regem. Tantas licenças para nos opormos ou nos adicionarmos à compreensão deste vasto mundo. Quantas flexões, derivações, regras da ordem unida: sujeitos, ações, objetos, complementos. Liberdade alguma no horizonte surge para que nos comportemos como indivíduos da nossa própria expressão. Não podemos escolher nem as nossas próprias letras sem que os fonemas se desagarrem e nos transformemos em algo que nem abstrato o é. Encontrar-se-ia num estágio anterior assim como esta folha em branco onde nos inscrevemos.    
   
E todos na sala da Ceia de Natal. Reclamando das regras familiares. Do peso bolorento das tradições. Da obrigação de ali permanecer quando gostaria de outras salas, quem sabe um espaço público. O sufoco da família a cobrar obrigações, a exigir regras, a domar os indivíduos. Sujeitos de sua própria história subtraída num coletivo sem base histórica para esta época da liberdade plena com os bolsos cheios de dinheiro a doar autonomia ao invés da instituição familiar.

As letras correm na velocidade da luz pela internet. Mas estes dedos que as denotam têm pernas lentas e paulatinas. Paulatinas o suficiente para sentir o calor dos trópicos, ofuscar-se na luz do verão, enverdecer-se de vida como as florestas Sul-americanas. Azular-se de céu e enfeitar-se de nuvens como uma fantasia de natal e quem sabe juntar-se às milhares de pernas em circunvolução da Lagoa Rodrigo de Freitas sobre o efeito da gravidade das luzes de sua Árvore de Natal.

Por isso mesmo escutou uma parte do diálogo na agitação de pessoas num supermercado a ultimar a ceia de Natal. Um homem jovem e despojado, pelo menos naquele momento de emoção, quem sabe depois dos argumentos da sua própria família nuclear venha a compor outra ação. Mas ele dizia:
O quê papai? Você vai passar o natal sozinho! Eu vou passar aí com o senhor. O senhor não vai ficar só. O senhor está bem? Como está passando agora, pai!

O desdobrar não foi ouvido, pois necessitava pegar um produto numa gôndola adiante. Mas o redobrar da história continuamos nós, as palavras que não serão lidas nesta noite de natal. A individualidade é uma conquista que não reduz conflitos, não aplaina contradições e tende a mover-se ao ermo como forma de garantia da sua própria força ontológica. O diálogo individualizado entre pai e filho não é improvável que se envolvesse numa neblina espessa de solidão com pingos de lágrimas a escorrer pelos cânions formados pelas rugas do tempo.

Naquele momento balançava o paraíso e o inferno da família com o paraíso e o inferno da individualidade.    

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