sexta-feira, 3 de maio de 2013

Por Vossa Mercê me ardo de amores...




                            
   A carta foi descoberta em uma greta, na parede de uma casa antiga de Toledo na Espanha. O proprietário atual da velha mansão se dispusera a fazer uma reforma. Por trás de uma das vigas,  deu-se com o tesouro , envolto em um canudinho e atado comum já puído barbante.  Junto uma espiga de milho que deve ter ajudado a introduzir o canudo nas profundidades do muro. Havia sido ali colocada, cuidadosamente, como uma relíquia que se quer preservada. Como se a descoberta  inoportuna pusesse em desequilíbrio a estabilidade de dinastias e estados. A restauração careceu de cuidados arqueológicos. O documento ameaçava desintegrar-se ao simples toque das mãos. Para surpresa de todos,  a cartinha não carregava consigo segredos de estado, estratégias militares, conspirações palacianas. Tratava-se de  uma carta de amor.
                               As linhas  haviam sido escritas, em letra artística,  com uma pluma de pássaro : nada mais adequado  para palavras de amor !  Fluidez, leveza, horizontes infinitos de passarinho. Nela, um apaixonado Dom Alfonso de Vargas y Montes  dirigia-se à sua querida Doña  Maria de Sierra,  com a aflição dos amantes, em frases como : “É por vossa mercê que me ardo de amores...” e “nasci para servir a vossa mercê e não para mandar”.   Agradecia por alguns favores recebidos  e demonstrava, claramente, que o amor se fazia correspondido,  pois  D. Alfonso elogiava, cortesmente, a letrinha da amada em correspondências anteriores.  Citava ainda duas outras pessoas que, certamente, deviam conhecer a relação  secreta: “ Pepita, quando te beijar, te dará dois beijos, um por mim e outro por Don Juan”. Terminava a missiva de forma esperançosa : “Por haver escrito com pressa, não explico melhor meu afetuoso amor por vossa mercê. Para manhã, sendo Deus servido, espero resposta”.  Datava D. Alfonso sua correspondência : “29 de Outubro de 1700”.
                               Tinham se passado mais de trezentos anos desde que o nosso apaixonado e fervoroso Vargas y Montes encaminhou  aquelas bem traçadas linhas à sua amada. Quem seriam D. Alfonso e D. Maria de Sierra ? Qual o fim dessa história ? Pesquisadores tentaram identificar o casal de enamorados , mas mostrou-se impossível o projeto. Na época, não havia registro nenhum de mulheres  e nem participação delas em  levantamentos censitários. Dom Vargas y Montes também não se localizou.  Descobriu-se, apenas, que a atual vivenda onde a relíquia foi descoberta  fazia parte de um antigo seminário e aventou-se a possibilidade de a amada de D. Afonso ser uma religiosa, talvez enclausurada com o único fito de ser afastada de um pretendente de origem plebeia ou  inadequado aos olhos da família Sierra.
                               O leitor pode até concluir, como Álvaro de Campos, que “Todas as cartas de amor são ridículas” , independentemente da cronologia de quando se as grafaram. Talvez, no entanto, mais grotescas e ridículas sejam as forças que se antepõem seguidamente ao exercício natural do amor em suas mais diversas formas. A paixão de D. Afonso e Doña Maria terminou corroída pela inexorabilidade  do tempo, como todas as coisas neste mundo,  sujeitas à ferrugem e ao cupim das horas.  Se os beijos  do nosso galante  escritor aconteceram apenas pela intersecção de Papita  ou um dia chegaram à esperada realidade, não se sabe. Apenas temos a certeza que duraram o infinitesimal momento em que aconteceram. Se o amor carrega consigo essa efemeridade inevitável, a cartinha de trezentos anos prova, por outro lado, que o sentimento que tangeu D. Afonso e D. Maria são eternos na sua essência. Hoje , com os celulares e os e-mails,  já não possuem a perenidade de registro que Vargas y Montes um dia imprimiu.  Mas, no íntimo, mantém aquela cola básica que se faz a força motriz da humanidade e que um dia redundou na degustação dos frutos da árvore do bem e do mal e na expulsão dos jardins do éden.
                                               O que faz a Terra girar sempre continua sendo a  a esperança que imantou D. Vargas y Montes :  a de que, para amanhã, sendo Deus servido, uma resposta há de chegar.

 J. Flávio Vieira

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