sexta-feira, 14 de junho de 2013

Do pijama à gravata



Em meio ao mundo utilitarista  em que vivemos, somos, continuamente, impelidos a crer que as cidades  são constituídas de prédios, de ruas, de carros, motos, muros e paredes. Ledo engano, amigos !  Uma peça de teatro, se se reparar bem , não  se resume apenas ao cenário. O que a faz grandiosa ou medíocre é  o doce tecido do seu enredo, a maneira sutil e poética com que os personagens desfilam, dialogam, interagem. É da leve trama das relações humanas, do bordado fino das aproximações, do macramê tantas vezes grosseiros  das suas  dissensões de que são fiadas as vilas e as cidades. Cada um de nós é uma linha nesta delicada trama. Alguns têm capacidade menor de insinuar-se entre os outros fios e se puem mais facilmente. Outros , tangidos pela agulha do destino, banham-se de cores, mergulham no coração do tecido , em sucessivos vai-e-vem e terminam por fazer brotar o bordado único que embeleza a toalha da vila e da vida: a casa, o lago, o sol, a árvore.  Sem eles, a urdidura do pano permaneceria na inércia da opacidade, na insulsa imacuidade do branco.
                                   No último mês ,  o Crato  viu esmaecer-se um pouco sua aquarela. A mão implacável do tempo desbotou, um tanto,  o colorido do nosso estampado.  Claro que o pano se vai puindo e outros desenhos vão surgindo nas extremidades, no faz-desfaz das ondas das horas. Mas doe-nos imaginar que os ornatos que nos acostumamos a admirar,  jamais os veremos de novo com as mesmas cores e as mesmas nuances. Um dos fios chamava-se Antonio Luiz Barbosa e era querido por todos. Funcionário aposentado do Banco do Brasil especializara-se na fina arte de fazer amigos. Um deles havia sido o Dr. Antonio Gesteira , uma das mais mitológicas figuras da terra de Frei Carlos e que nos deixara há mais de cinqüenta anos. Antonio Luiz fez-se o guardião da memória do nosso carismático cirurgião. Deixou, ainda, o mais completo trabalho que conheço sobre a vida do amigo, escrito num português correto e erudito, típico de quem havia perlustrado os umbrais do velho Seminário São José. Boêmio, amante das noites e tardes da  sua terra, compunha um grupo dileto de companheiros em que, estranhamente, o principal atrativo que os unia era a conversa, a palestra, a fofoca e não outras libações. Essa trupe engalanou as rodinhas da cidade por muitos e muitos anos e trazia nas suas hostes   membros ilustres e queridíssimos  : Caio Teles, Felicinha, Tália, Márcia, Regina Helena, Telizito, Dolores Milfont, Antonio Primo, Dionê e Natércia Pinheiro. Todos ainda tão presentes entre nós, dispersos que foram pela  inexorabilidade do tempo. O Crato fica menos colorido quando se percebe que toda uma trama rica  do bordado se esfumaça.
                                   Nestes dias, outros passamanes se desfizeram. Partiu o mais importante poeta-cronista caririense da atualidade. Mestre da poesia de circunstância, úmido do fino humor e sarcasmo da poesia popular, nosso poeta fez-se o fino crítico dos nossos costumes e da vida cotidiana cratense nos últimos cinqüenta anos. Chamava-se Zé Landim. Esportista nos anos áureos do futebol de salão cratense, fora um goleiro inspirado e admirado. Alma boêmia, tinha a noite como irmã , parceira e cúmplice. Seresteiro incensado, sua voz bonita e afinada inundou as serestas caririenses e saudou nossos luares. Interessante figura humana, Zé Landim fabricava amigos com a mesma facilidade com que se enfunava de arroubos os mais pueris, talvez porque , no fundo, nunca tivesse deixado crescer a criança que carregava consigo e norteava seus passos de artista.  Zé foi um ser múltiplo mas , certamente, era o fino bardo da poesia circunstancial que mais se lhe sobressaía. Era um craque. Vejam, por exemplo, as músicas  de campanha eleitoral. Alguém já viu coisa mais besta e banal ? Alguém se lembra de alguma da última campanha? Pois bem, há quarenta anos, Zé Landim fez um paródia para a campanha eleitoral de Pedro Felício que ainda hoje, pasmem vocês, está na lembrança de toda uma geração :
                                   “O Crato, já foi princesa
                                   A todo mundo  causava admiração
                                   Seu Pedro, na prefeitura, prá todo mundo
                                   Deu show de administração...”
                                   A maior homenagem que podemos lhe fazer, é lembrar algumas dessas crônicas poéticas que  ,se não escritas, tangidas pela volátil lembrança da oralidade, terminam por se perder na voragem do tempo. Pois vamos lá ! Grande Zé Landim!
                                   Zé fora dileto amigo e correligionário de um dos mais populares políticos do Cariri. Sabe-se lá porque, uma grande confusão aconteceu. E, em se tratando do nosso  poeta, não se fazia necessário muito para acender o estopim curto e inflamado. A intriga perdurou por muito tempo. Um dia, estava ele na rua conversando com um amigo comum, quando uma caminhonete parou colada aos dois. Era o político. Conversou com o amigo, mas como se dirigisse aos dois, pretendia, de alguma maneira, acabar com a infuca que já durava anos . Zé Landim fez ouvidos de mercador. Vindo da fazenda, após os cumprimentos, tirou o político dois queijos e presenteou os dois. Ao sair, Zé , desconfiado, cedeu o queijo ao amigo e à tarde mandou-lhe  uma quadrinha que , genialmente, resumia o encontro :
                                   “A velha cidade do Crato
                                   Doutras plagas é diferente
                                   Lá se dá queijo prá rato
                                   Cá rato dá queijo a gente”
                                   Zé Landim freqüentava, também,  com amigos de boêmia,  a bodega de uma outra figura adorada em Crato. Era ali numa das esquinas da Nélson Alencar e o proprietário :  Heleno Feitosa, um desses desconhecidos heróis do cotidiano. Heleno trabalhava de sol a sol. Almoçava no próprio estabelecimento, não arredava o pé  e com aquele pequeno comércio, trabalhando diuturnamente, formou todos os filhos e os fez cidadãos de bem. Um dia, Zé notou que Heleno ficava todo tempo sentado e com um pé inchado e em cima de um outro banco. Perguntou-lhe se o  tinha fraturado em algum acidente. Heleno, então, informou-lhe que se tratava de um esporão de galo que estava nascendo no tornozelo e incomodando como o diabo. Pouco depois, com o poder de síntese dos grandes poetas, Zé resumiu tudo numa Nona inesquecível :



                                   “Heleno Sales Feitosa
                                   Leva uma vida penosa,
                                   Todo dia faz serão,
                                   Trabalha que só um louco,
                                   Todo tempo prá ele é pouco
                                   E mal engole o pirão.
                                   Trabalha o ano inteiro,
                                   Não tira o pé do poleiro,
                                   Já tá nascendo esporão.”

                                   Uma outra história envolve nosso poeta e um outro mito cratense: João Aires de Aquino, conhecido por todos pelo carinhoso sacro-monárquico apelido de Dom João. Nosso quase rei ou bispo era proprierário de um dos mais famosos bares da cidade e que, pelo próprio temperamento algo difícil do dono, tornara-se quase um clube fechado. Zé Landim era um dos membros titulares e  vivia a cutucar onça com vara curta, aperreando o proprietário aqui e ali, esperando a reação. Um dia saiu na cidade a notícia que D. João havia sofrido um acidente de carro e estava ainda em recuperação, todo enfaixado. Zé Landim visitou-o e, depois, resumiu, assim o ocorrido :




                                   “João Aires de Aquino
                                   É um menino traquino
                                   E mexe com todo mundo,
                                   Num desastre de veículo
                                   Quebrou o par de testículo
                                   E as quatro pregas do fundo”
                                   D. João agüentou firme os primeiros versos, mas no final, saltou do cavalo :
                                   --- “Pensa queu não sei o que você tá insinuando, rapaz? Você tá querendo dizer queu só me restaram quatro, né, seu filho duma mãe?
                                   Sem Zé Landim e Antonio Luiz desbota um pouco a alma encantadora da cidade.  O Crato fica mais chato e menos gaiato:  tira o pijama e veste a gravata.

J. Flávio Vieira

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