segunda-feira, 17 de junho de 2013

O Salmão - José do Vale Pinheiro Feitosa

O salmão
Entre o céu e a terra há uma estrada de sofrimento e morte. A terra onde eclodem os ovos e se tornam vida no ambiente das nascentes dos rios ou dos lagos gelados das altitudes. E quando a adolescência alonga seu corpo sai das terras altas numa viagem a favor da correnteza até as baixadas marinhas onde o mundo se lhe apresentará como projeto de futuro.

E o futuro se realiza no plâncton dos mares. Nas correntezas sinfônicas da grande narrativa dos oceanos. Tantos semelhantes, muitos predadores, o sentido trocado dos canais ora como El Niño ou como La Niña. De tudo que o universo se contamina do lixo industrial, do arrastar com força de megatons atômicos do casco dos navios petroleiros perturbando toda a dinâmica da costa. 

É uma vida de criação, de solução frente às contradições, um construir na permanente desconstrução. No meio do cardume que protege a individualidade na trama do coletivo, mesmo que alguns membros caiam pelo avanço faminto dos predadores. Mas é uma vida em permanente substituição. Em contínuo apreender as necessidades.

Em permanente aprendizado do movimento dos oceanos. Com seus ciclos naturais e seus desastres ambientais. Aprender sobre o meio em que se desenvolve é a regra da permanência nele, além do contributo, se não em capítulos inteiros, pelo menos a redação da linha de um inciso.

E quando se toma de plenas forças no ambiente salgado dos mares em que vive, vem a necessidade de gerar outros iguais e tudo o mais é esquecido. Abandona a carreira na qual se consolidara e sai em decidido contrafluxo em busca de sua origem, abandona as águas salgadas e migra na renascença da água doce com uma determinação nascida simultaneamente em si e fora de si.

Todos fazem o mesmo. Portanto uma grande necessidade externa ao corpo e ao projeto de vida no mar. Rasga a desembocadura daquele mesmo rio onde um dia desceu e, contra a correnteza e a força de gravidade, toma a sinuosidade do aclive montanhoso como destino.      

Salta corredeiras, com seu corpo sobre as pedras, rasgado pelas lâminas das lascas que a erosão das águas soltam. Enfrenta pequenas cachoeiras, se emaranha no cipoal e galhos que descem pelas águas. E vai em busca de sua origem. Contra sua higidez física. Contra sua migração marinha. Contra a sanidade da vida conhecida e, até então, satisfeita.

Paradoxalmente o Salmão retorna ao lago onde eclodiu e nele libera milhões de ovos que gerarão outros de sua espécie. E se esta dramática vida é a síntese de todos na natureza mutável é, no entanto, o curso determinado com a participação dos atores e neles, apesar da ordem geral, reside a micronarrativa de uma vida.

Mas não os Salmões das multinacionais nórdicas do sul do Chile. Multinacionais que inventaram um falso ciclo que engana esta narrativa. No lago Llanquihue eclodem os ovos e em viveiros fazem crescer milhões num ritmo de granja a engordar e crescer rapidamente. Em seguida põem a todos em imensos tanques e os transportam até as gaiolas na costa do mar.

E aprisionados, mesmo que em ambiente marinho, os salmões não mais fazem o seu projeto de vida, mas o projeto de engordar o preço das ações nas bolsas de valores. Os salmões são ludibriados com a simulação do retorno às corredeiras de origem e assim nidam os ovos necessários ao ciclo do grande negócio.


Os salmões do Chile são como o povo do Chile: uma narrativa para mover o grande capital. Que além dos ovos ainda têm a rica venda da carne do salmão abatido logo após completar sua missão nesta ordem. Tornar a vida do poderoso investidor e do grande executivo numa especial e individualista presença sobre o destino do que resta do sufoco do aumento na passagem de ônibus dos trabalhadores. 

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