domingo, 1 de setembro de 2013

Casa Grande & Senzala




Dr. Umberto Hernandez ficará na história do Cariri como um dos primeiros  Neurocirurgiões a se radicar  na nossa região com um continuado e profícuo exercício que salvou incontáveis vidas. Numa época em que já proliferavam as motos como meio popular de transporte  e sua consequência inevitável, os politraumatismos,  a Neurocirurgia  , estrategicamente, postava-se na fronteira entre a Vida e a Morte.  Dr. Umberto vinha de Cuba, já maduro, com uma larga experiência no seu ofício e trouxe consigo  outras louváveis virtudes:  uma profunda visão social da Medicina; uma ética acima de qualquer mácula; uma enorme aversão a qualquer tentativa de exploração da sua digna atividade; o desprendimento e a humildade de formar outros profissionais qualificados. Consta que depois de um trabalho  diuturno e benéfico, por longos anos, terminou sendo denunciado por alguns de seus pares e precisou retornar ao seu país.
                               Lembrei-me dele nos dias atuais  quando  se gera enorme polêmica com a vinda de outros profissionais  estrangeiros  no Programa Governamental  Mais Médicos.  Gostaria de dar minha visão, um pouco na contra corrente do pensamento médio institucional, no que tange à questão. Temos enormes disparidades na distribuição de profissionais num Brasil,  onde ¾ dos médicos se alojam estrategicamente, e não por mero acaso, nas regiões Sul e Sudeste.  A tônica da Medicina  desde o Século XX tem sido, claramente, uma atenção direta com a forma Terapêutica e um afastamento da sua face Preventiva. Formamo-nos médicos para tratar as pessoas e não para prevenir os males que por acaso podem ser evitados. Por trás disso tudo, claro, existe um grande e forte movimento empresarial   clínico- hospitalar e toda indústria farmacêutica, para quem a Doença é sempre  um vultoso negócio.  Durante todo o Século XX,  a lógica eminentemente capitalista relegou a prevenção ao subsolo e nomes como Osvaldo Cruz, Adolfo Lutz,  Carlos Chagas, passaram a fazer parte de um passado heroico e ultrapassado. A distribuição dos médicos, formados para tratar quem pode pagar, fixou-se, prioritariamente, nas regiões mais ricas e litorâneas.  Os poucos que se aventuraram a , como bandeirantes, adentrar o interior pobre do país, foram sempre vistos de forma preconceituosa por seus colegas dos locais mais abastados: com poucas condições,  estariam praticando uma Medicina atrasada, própria de séculos anteriores. Por sua vez, a forte e importante onda tecnicista que envolveu a atividade médica durante todo o Século XX, com avanços importantíssimos  e indiscutíveis , não só aumentou a distância entre o praticado na capital e  no interior, mas fez , também, com que os médicos se tornassem cada vez mais técnicos e menos missionários.  E o técnico é bem mais cartesiano, não lhe passa pela cabeça a possibilidade de dois mais dois não serem exatamente quatro.
                                               O SUS, no final dos anos 80, tentou dar uma reviravolta nesta ordem de priorização do terapêutico ,em detrimento do profilático. Nasceu, no entanto, dentro destas dicotomias inevitáveis : um sistema de viés socialista tentando ser instalado num país de forte tendência neoliberal;  necessitando de médicos e profissionais com ampla visão generalista e formando médicos especialistas e com forte formação terapêutica;  buscando profissionais  hipocráticos e se defrontando com médicos de boa formação técnica , mas pragmáticos e amplamente antenados com o Mercado.  O sonho igualitário de trazer Saúde para todos os brasileiros topou na exiguidade de recursos de um país em desenvolvimento. Verba pouca foi destinada prioritariamente para a Atenção Básica, levando ao colapso da Atenção Secundária. Mesmo assim, com todos os percalços, conseguimos, com ações mínimas , abater drasticamente a Mortalidade Infantil , a Desnutrição, as Doenças de Controle Vacinal, levando a um invejável aumento na Esperança de Vida.
                                               É com essa visão particular e mais ampla que , como médico há mais de trinta anos trabalhando no interior do Brasil, que vejo como inequívoca a necessidade de contratação de médicos , seja lá de onde for, para trabalhar nos grotões desse país. Vi luminares da Medicina Uspeana , dizendo que o médico não iria, por nenhum dinheiro desse mundo, trabalhar nos locais mais miseráveis, porque lá, sem nenhum recurso, não teria o que fazer e se desesperaria. Discordo completamente dessa visão de Avenida Paulista. Estão querendo passar para todos que os profissionais no interior desse Brasil nada estão fazendo, pois não têm às mãos um Pet Scan ou uma Ressonância Magnética. Querem me convencer que Dr. Leão Sampaio em Barbalha, nada representou; que Dr. Cícero em Campos Sales teria sido dispensável;   que Dr. Gouveia em Iguatu foi uma excrescência; que Dr. Montalverne  Guarany em Sobral era perfeitamente descartável.  Permitam-me discordar dessa visão estreita e tosca. Cabe-nos lutar para que um dia , todos os rincões desse país tenham as mesmas condições de acesso à Saúde , mas não é justo que até lá profissionais médicos sejam impedidos de fazer o pouco que estiver ao seu alcance para minimizar a dor, o sofrimento, mesmo cientes que poderiam, sim, fazer muito mais, se assim condições existissem. Se se reparar bem,  não temos no Cariri os mesmo recursos de Forteleza, Fortaleza não tem os mesmos de São Paulo e São Paulo, por sua vez , perde para os dos EUA. Tudo é perfeitamente relativo.  Jogar no lixo a  vocação missionária hipocrática é o mesmo que  arrancar a sagrada túnica de sacerdote  que historicamente  vestimos e nos imantou de  um poder mágico e encantado.
                                               Acredito que, no presente momento – mesmo sujeito à cara trombuda dos meus pares-- a contratação  médicos estrangeiros é uma necessidade  imperiosa e, mais, é preferível os cubanos pela forte formação em Medicina Social. Aprenderam a , com medidas simples,  combater a miséria. Seus achaques são bem mais próximos das nossas centenárias chagas. Sempre é bom lembrar que os Indicadores de Saúde do seu país são os melhores das Américas todas. Pasmem, ganham do Canadá ! Muitos dirão que  estas conclusões são perfeitamente ideológicas, mas todas as que se contrapõem a elas também o são. Os opositores babam de fúria, não contra os profissionais, mas contra Fidel. Se os médicos que aqui desembarcaram viessem dos EUA ou da Inglaterra seriam recebidos com flores e fogos de artifício.
                                               As vaias que irromperam em Fortaleza contra os médicos cubanos denotam , totalmente, a nossa falta de foco.  Almofadinhas, não somos acostumados às manifestações públicas, coisa de proletários. Os colegas aqui chegaram num projeto governamental. Não têm nenhuma culpa das nossas desavenças. Éticamente devem ser tratados com educação e lhaneza. Os gritos de  “Escravos!”  “Escravos!” que ecoaram na Escola de Saúde Pública vieram dos amplificadores da “Casa Grande” . A Senzala não merece atendimento de médicos, já tem seus rezadores e meizinheiros.  Já não basta ?

J. Flávio Vieira

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