J. Flávio Vieira
                               Wanderico ensinava Sociologia em
Matozinho e era uma figuraça. Alto e esguio, cabelo grande preso por uma
Maria-Chiquinha, barba longa e desgrenhada, roupas simples montadas em cima de
umas chinelas currulepe. Fazia parte daquele protótipo de professor sociólogo,
só que não mandava rasgar livros e nem pensava em se meter em Academias. Os
alunos o adoravam : tanto por sua dedicação,  como pelo carinho que dedicava a todos na
Escola. Wanderico chegara a Matozinho, há pelo menos vinte anos, quando se mudara
da capital. Adaptou-se perfeitamente àquela vida provinciana e trouxe na
bagagem uma larga experiência pedagógica. Sabia-se pouco do seu passado  na beira-mar , mas ali sempre levara uma vida
monástica.  Devia ter seus cinqüenta e lá
vai lapada. Morava sozinho, fizera-se sempre um solteirão convicto. Não é que
não gostasse da fruta, tanto que namorava há mais de dez anos uma mocinha bem
mais nova que ele: Afonsina.  Ela fora
sua aluna no colégio e era de família humilde, mas queridíssima na Vila. 
                        Wanderico
, um sujeito desprendido, justificava sua solteirice crônica , sua aversão ao
altar, com razões bastante pragmáticas. Entendia que o casamento era uma
instituição que não podia dar certo porque precisava, necessariamente,
assassinar o namoro. Comer a famosa saca de sal juntos mostrava-se motivo
suficiente para deixar intragável 
qualquer relacionamento. Namoro e paixão, dizia sempre, eram coisas boas
demais para serem liquidificadas pelo matrimônio.  Unir as duas escovas de dentes deixava,
imediatamente, o tesão banguelo. Deusulive !
                        A
filosofia de Wanderico, no entanto, esbarrava em muitos obstáculos. Afonsina,
como toda mulher , sonhava em casar e aquele relacionamento longo a vinha
deixando na berlinda. Em Matozinho, já se perguntava nas beiras de rua, se
aquilo era pra casar ou pra que diabos era. Namoro longo denotava ,
imediatamente, intimidades na mesma proporção e, ali, todas as amizades tinham
que ser, necessariamente, em preto-e-branco.  Qualquer  possibilidade de meximento prematuro  em cabaço de moça era igual a cutucar
marimbondo de chapéu, com vara curta.  Assim,
como no julgamento do Mensalão, sequer provas se necessitavam, as evidências se
faziam mais que suficientes para a pronta condenação do acusado.
                        Passados
os primeiros anos do namoro, começaram as inevitáveis pressões pelo desenlace
final . Os vizinhos cutucavam a família de  Afonsina e  se foi criando um clima cada vez mais
turbulento. “O homem é loiça!” , “Já era casado na capital, não pode casar de
novo, né?”, “Já provou da fruta e parece que já tinham comido uns gomes antes
dele!”  Todos, no entanto,  respeitavam muito Wanderico e se sentiam
constrangidos em acintosamente o colocar no canto da parede. Insinuações
escaparam aqui e ali, sutis indiretas se teceram, mas o professor  parecia um verdadeiro artista fingindo-se de
João-Sem-Braço. Comemorado, por fim, o aniversário de dez anos do namoro, num
Natal onde todos estavam reunidos, o pai da moça foi às vias de fato e ,
delicadamente, colocou o noivo a par das 
expectativas e preocupações da família diante do infindável
casa-não-casa.  Wanderico fingiu entender
tudo e prometeu :
                        ---
Quando Julho chegar, nós casamos, prometo ! Podem preparar a festa.
                        Afonsina
e os familiares ficaram felicíssimos com a promessa e começou-se a finalizar o
enxoval que já se vinha preparando há tantos e tantos anos.  A notícia espalhou-se por toda Matozinho:  finalmente  iria cair por terra o último reduto do
celibatarismo regional. Os amigos mais chegados, no entanto, desconfiaram da
mudança  súbita de Wanderico, sem uma
resistência stalingradense,  ele que
mostrava-se , sempre, um empedernido inimigo  do altar e da água benta. Na primeira
oportunidade, já em meados de abril, no Bar do Giba, numa mesa de bar, entre
uma e outra lapada de cana, um companheiro quis saber:
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E aí, Wanderico ? Como é , rapaz, temos enterro de gente viva em julho?
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Não, amigos, ainda não tem nada certo!
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Como não, homem de Deus ? Você não prometeu ao pai da moça que casava logo que
julho chegasse?
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 Pois é, mas  pelo visto ele vai demorar!
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Julho vai demorar? Mas como, Wanderico, não 
chega daqui a três meses? -- Quis saber o amigo, já meio exasperado.
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Eu prometi casar  quando Júlio chegasse!
Vocês é que não entenderam!  Júlio é um
amigo meu que foi pras bandas de São Paulo há uns trinta anos e nunca mais deu
notícia, nem sei se ainda está vivo!
                        Só
então Matozinho entendeu que Wanderico, diante da ameaça de prisão perpétua,  tinha impetrado  seus embargos infringentes.

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